Senhor Morfeu, Envenenador Público

O texto a seguir, lançado postumamente em 1966, foi escrito por um poeta francês excomungado do movimento surrealista. É um manifesto mordaz contra a hipocrisia da proibição das substâncias que nos trazem gozo e estupefação desde a aurora dos tempos: as drogas. Em uma prosa poética furiosa e alucinada, Gilbert-Lecombe desvela com sua pena embriagada de morfina e Lautréamont os mistérios que impelem os seres aos 'paraísos artificiais'. Para explicar o sublime fenômeno da Morte-na-vida, o poeta evoca Morfeu, entidade primordial do sonho, em sua encarnação como traficante do absoluto. Uma obra sincera e visceral que traz o peso de uma precoce crítica antiproibicionista e antimanicomial, através do olhar de um poeta que conheceu intimamente os prazeres e horrores do vício.

Para melhor apreciação, leia com esse som rolando:



Senhor Morfeu, Envenenador Público
Roger Gilbert-Lecomte

Se Claude Farrère – e possa ele jamais arrepender-se do que fez de melhor ao longo de sua carreira! Se Antonin Artaud e, principalmente, magnificamente, Robert Desnos, cada qual por seu turno, sozinho, trataram, sem tabu, do problema das drogas sobre o espírito após a promulgação da pouco inteligente lei de proibição (julho de 1916), nem tudo foi dito e o protesto não deve morrer: jamais será tão vivo como no momento presente para responder à diarreia jornalística documentário-moralizadora e principalmente policial sobre os “paraísos artificiais” (sic e resic e resic). Diários e hebdomadários, ilustrados ou não, maculam incessantemente suas colunas com reportagens retumbantes, feitas por escribas de todas as opiniões e de todos os sexos, sendo seu ponto em comum a profunda impotência em encarar corretamente uma questão sem dizer “amém” aos grosseiros preconceitos dos seus leitores. Que ele se apresente, este Petrônio dúbio sob a linha que “condena os vícios”, com um propósito menos abjeto do que o de condimentar seu texto com descrições truncadas dessas pretensas torpezas. O protesto aqui feito, certo de sua ineficácia, não visa resultado algum – apela simplesmente para a justiça desinteressada do espírito. Aqueles que, tanto neste caso como em outros, fazem questão de desorientar a opinião pública e alargar cada vez mais as fronteiras da idiotice, encontrarão aqui a expressão sincera do meu mais profundo desprezo.

Conforme o eixo do alto cilindro negro e brilhante, brincam de esconde-esconde e revoluteiam as visões fugidias vistas de soslaio; o pavor nos olhos das lebres orelhudas do medo. Sob o chapéu gigantesco, o Sr. Morfeu dissimula mais ou menos uma ausência de rosto. É dia, é noite; mas é sempre noite quando o Sr. Morfeu passa. Todas as polícias do mundo que o procuram jamais o encontrarão, por causa de seu porte, a tal ponto estranho, que o torna invisível. Por cúmulo da ousadia, ele ameaça:

                                                                                                                                                                                  Zdzislaw Beksinski

“Quando eu passeava, inteiramente nu, pelas paisagens mitológicas, poucos altares me erigiam, é verdade, mas pelo menos respeitavam-me a carcaça em repouso sob minha cabeleira imensa e áspera como palha de ferro – foram vocês que me tornaram calvo, miseráveis! Quando eu fechava os olhos onde tubilhonavam mundos, como quando se guarda, após o trabalho, os instrumentos de precisão em seu estojo, deixavam-me contemplar em paz, em meio ao ruído da tempestade e dos sonhos, o nascer dos meteoros e fosfenas. Infelizmente, último detentor do segredo da vida, o Oriente agoniza agora! Ah! Celebrai magnificamente seus funerais antes que ele renasça e pule em vosso pescoço! Sim, pois seu despertar será terrível na face do mundo. Com meus pés aleijados não posso deixar de estar, de coração, entre as hordas subterrâneas das lívidas crianças da noite que brevemente pisotearão vossa imunda civilização. Pelo menos, faço o jogo deles no próprio local. Vou roendo lentamente, como um milhão de ratos, o Ocidente que me renega e não tomarei parte no desmoronamento desse colosso de pés de manteiga, cabeça de veado.

“Tendo-me conhecido sempre como bonachão negociante-de-sono, perguntais certamente que nova firma represento! Mas, mesmo que seja apenas pela atmosfera deletéria que me cerca e que emana principalmente de minhas orelhas de vampiro, sentis logo intensa e obscuramente o vasto princípio que propago. Quanto a exprimi-lo, bastante dificuldade teríeis. Quando muito, poderia apresentar-me como um laborioso gênio da Morte-na-Vida. Sou o senhor de todos os estados naturais ou provocados que 'prefiguram', simbolizam a morte e, portanto, participam de seu sucesso. Estes estados ocupam, na vida humana, um lugar muito mais importante do que se acredita. Lembrar-vos-ei, em primeiro lugar, citando Gérard de Nerval, esta constatação tão verdadeira, tão evidente, tão essencial, tão misteriosa, que todas as consciências modernas esquecem regularmente: o homem passa pelo menos um terço da vida dormindo. O fato de não dar atenção a tão simples verdade basta para falsear completamente o conceito atual de “vida humana”. Este lamentável esquecimento constitui uma das principais causas dos males presentes e do cataclismo futuro e próximo. É provavelmente para dar um exemplo que digo que são encerrados todos os dias, em asilos de alienados, homens cujo único crime é o de darem à atividade do sonho um valor igual àquele com que se favorece tão generosamente a atividade de vigília e que por conseguinte, executam as ordens do sonho, na vigília. Por esta equitativa concepção da vida dupla, o próprio Nerval foi amaldiçoado no século.

                                                                         Alberto Seveso

“Mas, ficai sabendo, faces pálidas, que além do sono, vêm de direito a meus territórios-fantasmas todos os outros estados humanos: recusas de agir, cãibras da vontade, paralisias do vir-a-ser individual, embargos do fluxo metafórico da consciência superficial, brechas na direção de zonas noturnas, os climas interditados onde reina aquele que diz 'não' à vida: o 'eu', o impossível.

“Notai agora esta definição de universalidade que apresento aos zoólogos: o que melhor diferencia o homem do animal é o cachimbo.

“Que me perdoem, quanto ao último termo deste aforismo, por fazer um sacrifício à necessidade de imaginar, de 'ser concreto', de acordo com o gosto da época e por acrescentar uma explicação simples e lúcida: conforme uma imagem retórica bem conhecida, dando o continente pelo conteúdo, dizendo cachimbo quero dizer todos os produtos que servem, mais ou menos, para provocar artificialmente o sono. Eis ainda uma verdade banal e muito clara sobre a qual jamais se pensa, isto é: todos os homens de todos os tempos históricos e pré-históricos, quaisquer que sejam sua moral, religião ou grau de civilização, sempre usaram esses produtos que as farmácias chamam de tóxicos, desde os filtros dos mágicos antigos e dos curandeiros de todas as tribos primitivas, as ervas santas dos Incas, a coca, o peyote do México, o bétele da Oceania, o ópio chinês e indiano, o haxixe e todas as variedades de cânhamos asiáticos e africanos, até os venenos modernos da Europa: éter, tabaco, morfina, heroína, cocaína e ainda o mais universal de todos, o álcool, sob suas variadas formas metropolitanas e coloniais.

“É bastante compreensível e lógico que essas drogas, destinadas a provocar mais ou menos depressa e mais ou menos lentamente o fenômeno de consciência que classifiquei, vagamente entre as recusas de agir, mas que sem dúvida incluí em meu reino Morte-na-Vida, sejam por outro lado nocivas aos instrumentos da ação, isto é, aos órgãos do corpo humano.

“Baseando-se nesta constatação bastante simplória é que, por um lado, por razões facilmente explicáveis, não sentem necessidade de usar esses produtos químicos, e, por outro lado, veem-se munidos legalmente do poder de atentar contra a liberdade privada de seus concidadãos, renunciaram de uma vez por todas a aplicar o princípio político da inação preconizado por Lao-Tse; certo número de homens julgaram ser possível acabar definitivamente com o consumo de drogas, proibindo-as.

“Tais proibições sempre têm fins aparentemente corretos, como o bem público, e objetivos menos aparentes, um pouco sujos, como por exemplo, a repopulação.

“A proibição do álcool nos Estados Unidos, assim como a do ópio, da cocaína, etc., em quase todos os países origina-se desta maneira depensar comum não somente a todos os legisladores, mas também a todos os homens que pensam 'direito', isto é, a maioria dos países civilizados.

“Quanto aos que pensam de modo diferente, respondem às proibições pela fraude ou pela inversão do ersatz. Mas todos os homens de toda sas nações continuam a provocar artificialmente em si próprios o estado de Morte-na-Vida, por meios à sua escolha.

“O tabaco nunca foi proibido, o álcool quase nunca; enfim, o consumo do ópio é recomendado na Índia e na Indochina. A parcialidade destas proibições nunca foi determinada pelo caráter mais ou menos nocivo da droga, como deveriam prová-lo, principalmente os dois primeiros exemplos, se o juízo do leitor não for completamente falseado pelas proposições da imprensa sobre os estupefacientes proibidos, bode expiatório dos higienistas e seus servidores. Assim, eu, Morfeu & Cia., que atualmente tenho o truste das drogas proibidas no mundo, pretendo responder aos jornalistas pagos por meus concorrentes para denegrir minha mercadoria. E vou defendê-la com imparcialidade.


“Sim, senhores da continência, neste assunto, como em todos os outros, aliás, existem os mais funestos mal-entendidos, desde os mais grosseiros até os mais sutis. Comecemos por observar que, sendo grande parte dos meus estupefacientes o apanágio de uma ínfima minoria, a grande maioria que os ignora faz de seus malefícios uma ideia totalmente lendária, ideia sabiamente alimentada pelos repórteres que sempre procuram o horror romântico barato. Nas regiões onde todo o mundo consome o álcool em quantidade mais ou menos grande, não existe ninguém, a não ser umas velhas solteironas, cheias de boas intenções, que creia nas vantagens da Liga Contra o Álcool. Todo mundo os conhece, em sua roda, bêbedos inveterados e exagerados, vendendo saúde e dez vezes centenários. Ao mesmo tempo, podemos rir comparando os cartazes grotescos onde pintam “o inferno dos viciados em drogas” (sic e resic e resic) – e na falta de mais ampla informação, o público calca sua opinião nestas caricaturas – comparando-os, com a inofensiva realidade.

“Inúmeras vezes, visitando meus fiéis, acompanhei com andar claudicante, os passos maiores e mais longos de célebres repórteres, aventurando-me em antros de fumo e em cafarnauns mal iluminados e decorados com trastes de toque asiático, onde os bravos e alegres rapazes contavam, dando tapas nas coxas, estórias licenciosas e até mesmo sádicas. Amargas decepções afligiram vossos espíritos embrutecidos por previsões sepulcrais, quando descobrísseis autênticos e antigos intoxicados, inveterados adeptos de estupefacientes formidáveis, mas também amigos de boa mesa, bom vinho, e, cúmulo da abominação, muitas vezes tendo rebentos igualmente imbecis, galhofeiros, gordos, bochechudos e tão prósperos quanto os pais. E, se vivêsseis algum tempo em contato com esses forçados do mal, logo veríeis que sua vida é regrada, que cuidam de seus negociozinhos, que têm as mesmas preocupações dos outros bacanais e que seu 'vício',enfim, não tem em sua vida um papel mais amplo, mais demolidor e nefasto do que outro entre os mais fantasmagóricos, a masturbação, por exemplo. Além do mais, para tornar vossa desilusão irremediável, por mais consternadora que fosse tal constatação – que os efeitos das drogas mais virulentas são incomparavelmente menos violentos do que os do álcool, pois não somente eles nunca têm delírios alucinatórios, mas levam a impudência ao ponto de jamais ficarem embriagados. Para eles, tudo se limita a uma vaga euforia. Só o terrível pó branco que é um pouco excitante.


“Desafio qualquer pessoa a contradizer-me neste ponto. É o certo abuso de meu produto que provoca às vezes os dois temíveis fantoches, meus primos, a Loucura e a Morte, mas o faz menos frequentemente do que o abuso do álcool. Sim, pois o álcool é meu melhor tóxico, e os viciados em drogas em geral são indivíduos de temperamento delicado demais para suportar longamente a embriaguez alcoólica.

“Se esta parte de meu império carece um pouco de lirismo, se todos os meus vassalos não são lá muito bonitos, a culpa é de vossa estúpida humanidade.

“Alguém poderá objetar, inteligentemente:

-Mas se por acaso, tudo o que declaras for verdadeiro (sede polidos), as terríveis proibições das quais falavas agora há pouco são certamente um pouco ridículas (olá, um ponto ganho), mas teu erro não é muito grave; evita, aos predispostos, hábitos maléficos, se não muito perigosos, pelo menos sem interesse!

“Ora, para com isto, infeliz! Quem é o miserável que pronuncia essas palavras afônicas? Eu o  repreenderia rudemente pela temeridade de seu julgamento, se não percebesse que esse mesmo infeliz, por um artifício de retórica ultragasto, sou eu mesmo. Para, portanto, infeliz, digo eu, pois não sabes por que motivo os viciados em drogas tomam drogas.

“Na noite impura de lama e sangue, onde a humanidade, assim como um esfolado arrasta sua pele, vai arrastando sua vida miserável e sofrida, minuto a minuto, montanha feita de élitros de insetos aglomerados, na noite impura de lama e lava, onde ninguém se reconhece a si próprio, eu Morfeu-o-Fantasma, eu, Morfeu-o-Vampiro, reino, tutelar e cheio de sarcasmo, sobre meus rebanhos malditos, como o rei condor rodopiando nas nuvens sobre uma horda de lebres cavalgadas pelo medo através de uma estepe árida, imensa e sem fendas como a representação geográfica da rotundidade do globo terrestre.

“E, se não Maldoror, farol do mal despertado na noite da terra, caem todas as lebres humanas fascinadas pelos círculos concêntricos que descrevem rapidamente meus olhares morfeanos. Sim, caem por terra, a cabeça separada da de seus sósias, nas torrentes subterrâneas do sono que se vão jogar no lago da morte. Mas, para alguns privilegiados somente, disseminados através de todos os tempos e de todos os espaços, multiplico a pequena morte e aperfeiçoo sua imagem até torná-la assíntota do mais autêntico trespasse, doando-lhe a poeira estrelar que cobre minhas asas, os parasitas mordedores que as povoam, os vapores que delas se elevam e os tubos de suas plumas transformadas em cachimbos.


“Mas estes seres eleitos pela maldição noturna são e permanecerão relativamente raros; meu império – infelizmente – está sujeito às leis biológicas.... As estatísticas demonstram facilmente que – com exceção de algumas personalidades superiores bastante evoluídas para fugir à maioria das contingências sociais (quantidade, se não qualidade, negligenciável) - meus súditos tornaram-se maioria, legião, unanimidade nas raças em declínio, nas tribos envelhecidas que agonizam. Pensemos no alcoolismo dos índios da América do Norte. São eles a monstruosa exceção entre os povos que vivem sua fase conquistadora de expansão. Em todo o caso, algumas miseráveis leis de proibição jamais poderão impedir essas gigantescas e fatais reações étnicas.

“Em vossas moribundas cidades da Europa, onde se gastam em seus últimos contatos todas as raças e todas as suas fases, vedes lado a lado todos os meus malditos, as vítimas dos fenômenos étnicos e as de dramas individuais, percebidos até agora pela 'psicologia dos estados', ainda desconhecida no conjunto de sua teoria e que Gilbert-Lecomte oporá, quando chegar a hora, a todas as velhas asnices derivadas da 'psicologia das faculdades' que apodrecem nas Sorbonnes deterioradas. Não há dúvida de que escapam ao meu domínio uma maioria de indivíduos que sentem a respeito das drogas uma repulsa verdadeira e invencível, que apenas reforçam os imperativos morais. São seres suja mocidade orgânica, que nada tem que ver com a idade, mas que passa tanto quanto por ela, faz com que neles predomine o 'instinto de autodestruição' do qual nunca ousamos falar e que, no entanto, tem um lugar igual na maioria das consciências humanas.

“Mas, diante desses homens ditos sadios, para quem o repouso de cada noite, mesmo reduzido ao mínimo, é ainda um fardo pesado do qual só desejariam libertar-se para agir melhor, há outros, os amantes dos longos sonos sem sonhos, aqueles que um mal desconhecido atormenta e para os quais a felicidade está na Morte-na-Vida. Há, principalmente, pesados e impiedosos, no campo fechado do corpo obscuro, os combates entre os inimigos mortais, querer-viver e não-agir, volúpia de poderes e outras mais pérfidas, do querer que agoniza em crepúsculos fúnebres, em declínios de vertigens.

“Entre os homens triplamente marcados pelo meu signo, descobrireis o resultado dessa antinomia em todos os degraus da escada dos valores. Depois de uma maioria de deformados hereditários, nos quais o gosto pelas drogas não passa de uma reação animal contra o não-senso que constitui sua vida tarada, e vereis que até alguns grandes forçados, amaldiçoados pelas tempestades e pelas borrascas que são sempre as terríveis vozes do espírito amaldiçoado, e sucumbindo à desonra de serem homens.

                                                                                                                         Jana Stovakovic

“Há, na realidade, para certo número de seres de sensibilidade super aguçada, uma consciência de estados opostos às vezes intensamente exaltada e às vezes dolorosa. Os sinais dessas crises exageram-se em alguns  predestinados, monstruosos só pelo fato de terem no fundo de si mesmos, como sua própria condenação, um elemento sobre-humano que ultrapassa e contradiz sua época, fulgurações do espírito ou energia física gigantesca. Tais elementos bastam para desajustar enormemente uma vida humana. Em primeiro lugar, por seu caráter antissocial: provocam ações irredutíveis ao julgamento universal do comum dos homens, que se vingam traçando à volta do maldito um círculo mágico que o isola; provocam a incompreensão odiosa e os constrangimentos niveladores que o forçam à amargura da solidão, também chamada 'loucura'. Por outro lado e em segundo lugar, por seu caráter antifisiológico no plano individual; a pura violência, que é sua natureza, ganha, em alguns anos, das mais fortes máquinas humanas.

“E, agora, admitamos este princípio que é a única justificativa do gosto pelos estupefacientes: o que todos os viciados pedem às drogas, consciente ou inconscientemente, não são as volúpias equívocas, a hiperacuidade sensual, a excitação e outras balelas com as quais sonham todos os que ignoram os 'paraísos artificiais'. É única é simplesmente uma mudança de estado, um novo clima onde sua consciência deverá ser menos dolorosa.

“Jamais poderemos compreender todos os inimigos, as pessoas de humor igual e serenas, os franceses médios, os burocratas da inteligência, todos aqueles cujo espírito, instrumento primitivo e grosseiro, mas inquebrável, está sempre pronto a entregar-se a seus hábitos cotidianos, sem jamais conhecer a noite sólida do embrutecimento petrificado, nem a agilidade milagrosa do clarão que cega. Eles não percebem que, em oposição aos peixes de boca redonda chamados ciclóstomos, os psiquiatras batizaram com o vocábulo 'ciclotímico' certo número de 'doentes' cuja vida decorre em alternâncias infernais e regulares de estados hipo e hiper, de depressões e de entusiasmos espirituais. Frequentemente, aqueles que conhecem a dor lancinante dessas depressões preferem recorrer ao suicídio.

“Mais incompreensível ainda será o estado de consciência assustadoramente clara. Trata-se da dor pouco comum ao homem de julgar-se de repente 'inteligente' demais. É inútil tentar fazer nascer, num espírito que não a experimentou, a aproximação deste estado que, segundo um determinismo desconhecido, num instante súbito de horror frio e tenaz do véu rasgado dos antigos mistérios. Ante a mais absoluta disponibilidade da consciência, isto significa a lembrança brusca da inutilidade do ato em curso, tornado símbolo de todo e qualquer Ato, diante do escândalo de ser, e de ser limitado, sem conhecimento de si mesmo. Essência da angústia em si que engendra os loucos, que engendra os mortos.

              

“E não é o obscurecimento reencontrado do estado de consciência normal e interessado na vida cotidiana, que pode um homem fugir da lembrança desta luz absoluta que mataria um cego vivo. Embora tenha sido apenas uma entrevista na fenda de um relâmpago, ela deixa na cabeça humana um câncer imortal. Sim, pois não podemos opor um estado habitual, que seria a norma, a outros estados que chamaríamos de patológicos, porque são percebidos imediatamente como inferiores ou superiores àquele. Há apenas estados mais ou menos dolorosos e a atitude normal do homem é provocar em si o estado de menor sofrimento. Assim sendo, a lembrança de um estado superior (por ser mais luminoso), ao estado dito normal, basta para tornar este último intolerável. Seria então preciso mudá-lo o mais frequentemente e o mais longamente possível. Infelizmente, para a clareza desta exposição, não é aqui oportuno examinar os diferentes meios capazes de fazer mudar uma consciência de planos que vão em princípio, da inconsciência absoluta à consciência total e onisciente: eis aí o princípio de toda uma ética dinâmica e imediata. Mas, no caso de que nos ocupamos, basta saber que o uso de estupefacientes, tomados em quantidade adequada, é inegavelmente um desses meios. Sim, pois cada droga gera um estado específico: a embriaguez do álcool, o kief do ópio e mais geralmente, a euforia dos alcaloides, etc. E se é impossível, no momento presente, encarar o valor mortal desses estados mais dolorosos, para não dizer inferiores ou superiores, as drogas certamente salvaram muitas vidas.

“Além do mais basta dizer que os estupefacientes são considerados por alguns místicos, por paradoxal que isso possa parecer, como meios de ascetismo. Claro que nunca poderiam ser considerados como geradores de êxtases, pois seus estados específicos estão nas antípodas, nem mesmo como favoráveis à contemplação, e sim como contravenenos. Na vossa civilização moderna, principalmente, onde o corpo humano fica degradado pelo excesso de alimento, pela febril superatividade...

“Em vão amordaçadas por vossas leis sociais, dormem entre vós energias destruidoras que poderiam fazer voar o mundo pelos ares. Por seus olhares incendiários, reconheço, nos terrenos desertos, Átila, Genghis-Khan, Tamerlão. A embriaguez do álcool é para os operários, o mais nobre protesto contra a vida sórdida que os fazem levar à espera da morte, enfim, do pensamento do Ocidente, à espera do cataclismo futuro, aureolado de revoluções, eu, Morfeu, moldo as hordas vindouras de acordo com minha rude higiene. Enquanto espero a hora, é sobre si mesmos que exijo que eles exerçam sua força de destruição. E nas mutilações voluntárias, os envenenamentos terríveis dos álcoois que fazem o ser ofegante rolar nas margens da morte, os golpes de cabeça nas paredes, todos os sofrimentos que me foram infligidos são os únicos critérios que me asseguram da existência de homens fisicamente desesperados, suficientemente mortos em sua própria individualidade para demonstrar na face o sarcasmo impassível do desinteresse perante à vida, único penhor de todos os atos sobre-humanos.”

E, enquanto, frenético, Morfeu-o-Vampiro desaparecia devorando-se a si mesmo, seus fiéis gritavam:
“Faze-nos durões e morde até matar!”

 


(Texto completo transcrito da antologia A experiência alucinógena.)


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