Negativland IV

 tsuki mo naku

 deadside

 paraná/paranóia

ruins

ah! sun-flower

 crash n' burn

 argentuum

 alive

 abismu

 mandragora

 uma-árvore-que-me-olha

underworld


Theophrastus Bombastus

Ian Goudelock

Ser pessimista e orgulhoso é uma combinação de merda. Estar certo, além de ser pedante, é venenoso. Será que meu projeto políticapocalíptico aqui expresso não é exatamente o que Eles - os inimigos da liberdade, o 0,1% da humanidade - não é bem isso que eles querem? Que tudo se arruíne no caos para que a ordem seja restaurada por aqueles com recursos para sobreviver ao colapso e construir o novo mundo?

Tudo mais arrumado, controlado, ajeitado, equilibrado, sustentado, devidamente dedetizado. Modernização conservadora.

Ordo ab Chao. Esse é o mote do pavio.

Pra onde mandar o currículo? Illuminati, Inc. está contratando. O café é free.

Esperança e dinamite andam de mãos dadas, nas mesmas mãos cerradas, em tempos de desespero toda luta é armada. Quando a inevitabilidade da explosão reclamar a sua hora, não haverá muralha entre sangue e sentimento.

Misantropo humanista,
idealista cínico,
hipócrita.

Não é essa a aceitação necessária para abraçar o absurdo?

Eu sei mentir bem, mas não gosto.

Como confiar em vocês?

Me permita um momento de sórdida lucidez. Sour sincerity. Sinceridade amarga.

É a sina do espírito que se curva ao impulso detetizador. Sutil diferença, será que percebeu?

Entre encontrar e eliminar, qual é o limiar?

O neologismo é o recurso do vil. O trocadilho, o refúgio do verme.

Tenho que eliminar os graus de podridão que me cercam.

1349. La peste noire. Malucos com bicos recheados de ervas cutucam os corpos com varas e colocam sapos sobre seus bulbos pustulentos. Caçando miasmas pegavam pulgas. E morriam. Era só ter uma sacada, mas o paradigma científico ainda não estava no ponto.

13:49. Contemporaneidade. A peste é mais insidiosa. Se instala nos corpos mais sutis. Espírito e mente também são infectados. Todos os chakras desequilibrados. Malucos mascarados chafurdam nos cancros orgânicos e espirituais, incautos como seus ancestrais. O vetor ainda não foi identificado, certificado, catalogado. Mas continuamos inspecionando com nossas rudes ferramentas sofisticadas.

A ambição atual é ser viral. Infectar, se alastrar, expandir, conquistar, explorar. Nada de novo sob o Sol, só mudou o meio de disseminação. Evolução pós-humana, a espécie finalmente aceita sua natureza infecciosa e busca uma auto-eliminação sistemática para uma nova aurora inorgânica.

Ficção? Longe disso. 

Longe disso, meu irmão.


A Scanner Darkly (Richard Linklater)

reflexos condicionados

eu já tenho as minhas próprias contradições. não conseguiria entrar pra algum partido ou movimento e ainda abraçar as suas. ter de defendê-las ou criticá-las uma a uma para tentar atingir um nível aceitável de coerência interna vestindo uma camiseta com uma sigla. não dá. não me dê bandeira com símbolo algum. eu não vou segurá-la. não tente me convencer a participar de militância publicitária que só realiza propaganda e agitação superficial. entendo o poder da dimensão simbólica e grande parte dele consiste em enganar. em mostrar, em discursar, em aparentar. é o que aparece que importa. o ângulo certo e os retoques necessários. conhecer as inseguranças e desejos mais secretos e mais universais e dedilhar seus acordes com carinho. pouco importa o que não aparece. fora de quadro a cena inspiradora com uma música emocionante não é nada. puro truque de palco. a prisão da atenção. entretenimento - já viu a etimologia dessa palavra? pois é, prender nossa atenção é o único recurso de sobrevivência pra todos os negócios e instituições estruturais desse sistema. por isso seus artifícios e sortilégios tem orçamentos estratosféricos e recursos fantásticos. produzem fantasmas. reflexos superficiais de uma realidade refletida. mas refletida de onde? refletida do que? onde está a fonte de luz? onde está o referencial? quem encara o espelho? como na história do vampiro, só que às avessas. olho o espelho e vejo o reflexo. mas eu não estou lá. lá? aqui. meu reflexo está ali, minha imagem - minha linguagem inata, meu layout interativo intuitivo, minhas configurações de autoimagem, meu reflexo refletido no espelho do outro. como eu vejo o reflexo dos outros no meu espelho? será que essas imagens existem? só eu que sou virtual? vampiro-às-avessas virtual? quais são as virtudes da virtualidade? a mais óbvia é que você não existe. não de verdade. num mundo justo todos serão considerados inexistentes até que se prove o contrário. se o paradoxo não puder ser assimilado e instalado no sistema operacional, este não será compatível com o ambiente da rede realidade. se a verificação do córtex frontal resultar num erro de processador aborte a operação e tente fazer o backup dos arquivos para outro dispositivo. o manifesto surrealista nunca poderia ter conjecturado a natureza onírica destes tempos fluídos, quase um século relâmpago depois. reflexos refratários em superfícies polidas ou rachadas, sujas ou imaculadas, o reflexo que procura não é esse produzido pelas leis da ótica - é um reflexo que te cobra banda larga. pacote de dados. qual a senha do wi-fi? existe mais publicidade no mundo do que um ser humano de 128 anos poderia absorver se ficasse grudado numa tela do parto ao caixão. some a isso o entretenimento e as notícias. qual a diferença entre esses três mesmo? cada vez mais parecidos, enredados, filhos da mesma indústria fértil e farta, filhos pródigos da mesma ninhada bestial, eternos magotes famintos projetando suas mandíbulas de hipopótamo para abocanhar um punhado da nossa atenção, uma ampola do nosso espírito, para inocular seu feitiço narcótico, um sonho manufaturado engenhado especialmente para sua satisfação, camadas de tratamentos de cores para criar um mundo mais vívido que o seu, a magia da ilusão e da edição se fundem com ternura em seu coração, quem é o novo ícone da revolução? a nova popstar teen do clube do Mickey fez um vídeo de si ostentando um prolapso retal e o novo passinho do Esquenta virou viral. abuso. alienação da mercadoria. mercadoria que é o corpo. objeto e identificação. objetivo e indexação. é a alma. uma nova promoção. promoção e pra mocinha. sonhos de transformação transformados em merchandising. os meios de profusão transmitindo a programação. transmentido pra população. informação, entretenimento, notícia, propaganda, pronunciamento, publicidade o que discernir de toda essa lavagem?     miúdos. miúdos mergulhados na estática. doce ruído branco analógico, seus fantasmas costumavam assombrar mansamente os lares das famílias que botou pra dormir, como babá diligente ou janela do desespero, agora já não estão mais lá. substituídos pelos erros digitais, glitches nos megapixels da sua tela,  uma conexão que se encerra, qualquer melodia reduzida à perpétua repetição de um décimo de segundo travado caído no gráfico frustrado desconectado cordão umbilical que vinha arrastando a décadas subitamente arrancado, conector usb não identificado. entorpecimento eletrônico interrompido. narco narciso torceu as narinas pra substâncias físicas. o que importa são as qualidades espirituais do ego - atenção. todos querem entreter. com sua dor, com sua raiva, com a sua confusão, com a sua alegria. um riso ou uma lágrima é o pagamento - devidamente contabilizado pelo google adsense. não há nada pra revelar pois é tudo verdade. é tudo real. documental. suco mental. extraindo leite de caixinha. longavida bandalarga e cocaboa – the millenial dream

(foto: urubu-máquina)

O amargo



Me dê uma cachaça
eu tô amargo demais
pra beber cerveja
ora veja
quem não gosta de fumaça
minha querida
não entende de bebida
nessa vida
eu já caí na desgraça



Versão da música da banda Eddie, tocada pela General Junkie de Natal.
Viva o Manguebeat.

Uma outra cidade

"Toda cidade é necrópole, é cemitério. O homem é o único animal que armazena seus mortos. Quer dizer, fica empilhando morto e a cidade tem que ficar em torno pra ficar velando aqueles mortos" - Roberto Piva


Dirigido pelo excelente cineasta paulistano Ugo Giorgetti, o documentário Uma outra cidade conta a São Paulo dos anos 50 e 60 vivida pelos poetas Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de Haro, Claudio Willer, Roberto Piva e Jorge Mautner. Este último, notório por sua grande carreira musical, é com certeza o mais conhecido desse bando. Piva, xamã panfletário do caos, é um de meus autores preferidos e já dediquei um artigo nesse blog para sua poesia convulsiva. Claudio Willer é um autor ainda em atividade com o qual tive meu primeiro contato através de suas traduções: Lautreámont, Allen Ginsberg e Antonin Artaud são alguns dos autores que ele traduziu para o português. Franceschi e Haro conheci através desse filme e já estou muito curioso para conhecer mais sobre suas obras.

A cidade vista pelos olhos desses jovens artistas incendiários é um banquete de cenas oníricas e memórias ricamente turvas, reveladas em entrevistas com os autores que introduziram na literatura brasileira uma expressão original das rupturas feitas pelos beatniks e pelos surrealistas, rompendo com todo rigor estético ainda vigente na poesia nativa. Eram ávidos leitores de poetas ainda obscuros como Jorge de Lima e Murilo Mendes, assim como dos universais Fernando Pessoa e Drummond. O formalismo dos círculos literatos e universitários gerava uma aversão mútua entre esses grupos e os poetas. Como diz Piva em um trecho, o grupo anárquico formado por eles estava de saco cheio de São Paulo e seus poetas cagados. Ofereceu para eles esse chá de

Bules, bílis e bolas


Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento
A vida não pode sucumbir no torniquete da consciência
A vida explode sempre no mais além
Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros
É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa alma fecal

Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude
Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso?
Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a liberdade
Procuramos amigos que não sejam sérios: macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos os que detestam os sonhos incolores da poesia das arcadas

Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário
Sede violentos como uma gastrite!
Abaixo as borboletas douradas, olhai o cintilante conteúdo das latrinas
A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras moribundas
"Como são lindos os olhos deste idiota"


(Roberto Piva. Transcrição do documentário.)



As paisagens da cidade eram digeridas por seus cérebros antropófagos e transformadas em poesia. Costurando a malha urbana pela trilha esparsa de livrarias e bares, não eram só os lugares característicos e cheios de vida de São Paulo que davam vida a imaginação dos poetas. Rodrigo de Haro, em uma incursão pelo bairro da Liberdade para frequentar o cinema local que passava os lançamentos de filmes japoneses que os poetas adoravam, escreveu:

Visita à Igreja dos Enforcados

No passo familiar que trilho
suando palmo a palmo
fechado pela sombra dos edifícios
de três pisos - três infernos
ninguém está para me saudar
nada encontro de parecido
com um desesperado abraço
ninguém espera minha capa
para fugir embuçado
nem flor da noite pendurada na trave a ruir
nem velas acesas
nem cavalos alveolados
com as narinas abertas como grandes crateras
nem tu! espada da morte
gladio oculto atrás de cada porta
dama da noite
dama de espadas
dama da forca
no passo familiar ninguém vem abraçar-me
mas aqui repouso
no beco sem liteira
diante de três paredes
rodeado de ladridos meu coração
e vejo
ai! que vejo
levantar-se a forca
decepar-se o porco
encerar-se a corda
piso cuidadoso
a laje pegajosa
estalo todos os meus ossos
sei que estou sozinho diante do adro
apagou-se toda luminária
é a igreja dos enforcados


(Rodrigo de Haro. Transcrito do documentário.)

Uma outra cidade
nos mostra a maior cidade da América Latina numa época de peculiar efervescência anterior à ditadura militar e à massificação, sob o olhar de rapina de um grupo de artistas que se mantiveram à margem da tradição e da popularidade mas que são fonte viva e pulsante de arte inovadora e destemida.

SOBREVIVEREMOS
(RUÍNAS ROMANAS)


Quantos poetas já não estiveram aqui
quantos já não escreveram
sobre a ofuscante aniquilação
diante desses dramáticos perfis minerais
quase natureza
reduzidos a não mais que montanha
tão perto da pedra original
barro anterior à forma
fronteira da mão que trabalha, do vento, da água
neles ressoa a ensandecida voz do oco, do cavo, da fresta
os silvos do vento
no silêncio matizado de sussurros
e agora também sou dos que enxergam
o informe
monstruoso passado
escultores do avesso os reduziram a isso
os autores do cruel teorema
que nos condena ao presente
e repete que nada sabemos e nada vale a pena
pois passado e futuro só existem
como passo para a informe eternidade
a custo divisamos lá fora a realidade logo ali
outro lugar
onde existiremos menos ainda
nós é que somos os fantasmas
e a solidez é o que está aí,
nas ruínas
a dizer-nos que isto -
nada
- é tudo o que temos


(Claudio Willer)

Aquele dia... (Sequence Theory Project e o colapso da civilização)



From Cambodia to South Darfur, Salvador and Palestine
tears for all my brothers and my sisters in the war machine
Children killed for nothing, dying on the borders
with a bunch of hopes bleeding on their shoulders
In the cities of control freedom costs a lot of money,
refugees from all the world tortured by the army,
human trafficking and little girls in prostitution
Cops will shoot you in the head, prepare for Revolution
Soon it's gonna be that day for the weak and the poor
soon it's gonna come that day that we won't be ruled


"Sequence Theory Project é uma banda não comercial. No modo de vida atual o Homem humilha toda criatura viva em nome de dinheiro, poder, autoridade e ordem. Nós resistimos a essa situação direcionada com nosso projeto coletivo de música, criando um ambiente digital D.IY. para compartilhar nossa arte com o público." (tradução livre da descrição no bandcamp) 


Aí está um interessante projeto musical moderno. Todo esse disco, The collapse of civilization é permeado pela ansiedade pandêmica da nossa civilização condenada. Diversas influências eletrônicas, de décadas atrás ou bem atuais, podem ser percebidas no álbum. A poesia amarga, porém esperançosa, ganha vida na rica voz da vocalista. Às vezes vacilante e rouca, em outras profunda e determinada, essa mina canta com a alma. Recomendo ouvir inteiro, tem uma ou outra meio chatas, mas é um bom álbum. Pelo bandcamp você pode baixar de graça ou dar uma contribuição para a banda.
Não há muita informação sobre eles na rede, percebe-se que eu falei poucos detalhes sobre a banda em si porque também não sei muita coisa. Mas se quiser saber mais sobre ela, a página oficial deles no facebook está aqui: Sequence Theory Project.





A música que postei, esse dub bélico melancólico e esperançoso, foi uma das que toquei como parte do projeto Negras Barcas na intervenção da Rádio Gralha no Bar Fidel aqui em Curitiba. Foram vários programas propagados por caixas de som e transmitidos em FM. Na foto sou eu discotecando e falando atrocidades na rua. Rolou até uma leitura do Planeta Guerra.

Ah, e jogaram uma bomba em mim! Sério haha