Senhor Morfeu, Envenenador Público

O texto a seguir, lançado postumamente em 1966, foi escrito por um poeta francês excomungado do movimento surrealista. É um manifesto mordaz contra a hipocrisia da proibição das substâncias que nos trazem gozo e estupefação desde a aurora dos tempos: as drogas. Em uma prosa poética furiosa e alucinada, Gilbert-Lecombe desvela com sua pena embriagada de morfina e Lautréamont os mistérios que impelem os seres aos 'paraísos artificiais'. Para explicar o sublime fenômeno da Morte-na-vida, o poeta evoca Morfeu, entidade primordial do sonho, em sua encarnação como traficante do absoluto. Uma obra sincera e visceral que traz o peso de uma precoce crítica antiproibicionista e antimanicomial, através do olhar de um poeta que conheceu intimamente os prazeres e horrores do vício.

Para melhor apreciação, leia com esse som rolando:



Senhor Morfeu, Envenenador Público
Roger Gilbert-Lecomte

Se Claude Farrère – e possa ele jamais arrepender-se do que fez de melhor ao longo de sua carreira! Se Antonin Artaud e, principalmente, magnificamente, Robert Desnos, cada qual por seu turno, sozinho, trataram, sem tabu, do problema das drogas sobre o espírito após a promulgação da pouco inteligente lei de proibição (julho de 1916), nem tudo foi dito e o protesto não deve morrer: jamais será tão vivo como no momento presente para responder à diarreia jornalística documentário-moralizadora e principalmente policial sobre os “paraísos artificiais” (sic e resic e resic). Diários e hebdomadários, ilustrados ou não, maculam incessantemente suas colunas com reportagens retumbantes, feitas por escribas de todas as opiniões e de todos os sexos, sendo seu ponto em comum a profunda impotência em encarar corretamente uma questão sem dizer “amém” aos grosseiros preconceitos dos seus leitores. Que ele se apresente, este Petrônio dúbio sob a linha que “condena os vícios”, com um propósito menos abjeto do que o de condimentar seu texto com descrições truncadas dessas pretensas torpezas. O protesto aqui feito, certo de sua ineficácia, não visa resultado algum – apela simplesmente para a justiça desinteressada do espírito. Aqueles que, tanto neste caso como em outros, fazem questão de desorientar a opinião pública e alargar cada vez mais as fronteiras da idiotice, encontrarão aqui a expressão sincera do meu mais profundo desprezo.

Conforme o eixo do alto cilindro negro e brilhante, brincam de esconde-esconde e revoluteiam as visões fugidias vistas de soslaio; o pavor nos olhos das lebres orelhudas do medo. Sob o chapéu gigantesco, o Sr. Morfeu dissimula mais ou menos uma ausência de rosto. É dia, é noite; mas é sempre noite quando o Sr. Morfeu passa. Todas as polícias do mundo que o procuram jamais o encontrarão, por causa de seu porte, a tal ponto estranho, que o torna invisível. Por cúmulo da ousadia, ele ameaça:

                                                                                                                                                                                  Zdzislaw Beksinski

“Quando eu passeava, inteiramente nu, pelas paisagens mitológicas, poucos altares me erigiam, é verdade, mas pelo menos respeitavam-me a carcaça em repouso sob minha cabeleira imensa e áspera como palha de ferro – foram vocês que me tornaram calvo, miseráveis! Quando eu fechava os olhos onde tubilhonavam mundos, como quando se guarda, após o trabalho, os instrumentos de precisão em seu estojo, deixavam-me contemplar em paz, em meio ao ruído da tempestade e dos sonhos, o nascer dos meteoros e fosfenas. Infelizmente, último detentor do segredo da vida, o Oriente agoniza agora! Ah! Celebrai magnificamente seus funerais antes que ele renasça e pule em vosso pescoço! Sim, pois seu despertar será terrível na face do mundo. Com meus pés aleijados não posso deixar de estar, de coração, entre as hordas subterrâneas das lívidas crianças da noite que brevemente pisotearão vossa imunda civilização. Pelo menos, faço o jogo deles no próprio local. Vou roendo lentamente, como um milhão de ratos, o Ocidente que me renega e não tomarei parte no desmoronamento desse colosso de pés de manteiga, cabeça de veado.

“Tendo-me conhecido sempre como bonachão negociante-de-sono, perguntais certamente que nova firma represento! Mas, mesmo que seja apenas pela atmosfera deletéria que me cerca e que emana principalmente de minhas orelhas de vampiro, sentis logo intensa e obscuramente o vasto princípio que propago. Quanto a exprimi-lo, bastante dificuldade teríeis. Quando muito, poderia apresentar-me como um laborioso gênio da Morte-na-Vida. Sou o senhor de todos os estados naturais ou provocados que 'prefiguram', simbolizam a morte e, portanto, participam de seu sucesso. Estes estados ocupam, na vida humana, um lugar muito mais importante do que se acredita. Lembrar-vos-ei, em primeiro lugar, citando Gérard de Nerval, esta constatação tão verdadeira, tão evidente, tão essencial, tão misteriosa, que todas as consciências modernas esquecem regularmente: o homem passa pelo menos um terço da vida dormindo. O fato de não dar atenção a tão simples verdade basta para falsear completamente o conceito atual de “vida humana”. Este lamentável esquecimento constitui uma das principais causas dos males presentes e do cataclismo futuro e próximo. É provavelmente para dar um exemplo que digo que são encerrados todos os dias, em asilos de alienados, homens cujo único crime é o de darem à atividade do sonho um valor igual àquele com que se favorece tão generosamente a atividade de vigília e que por conseguinte, executam as ordens do sonho, na vigília. Por esta equitativa concepção da vida dupla, o próprio Nerval foi amaldiçoado no século.

                                                                         Alberto Seveso

“Mas, ficai sabendo, faces pálidas, que além do sono, vêm de direito a meus territórios-fantasmas todos os outros estados humanos: recusas de agir, cãibras da vontade, paralisias do vir-a-ser individual, embargos do fluxo metafórico da consciência superficial, brechas na direção de zonas noturnas, os climas interditados onde reina aquele que diz 'não' à vida: o 'eu', o impossível.

“Notai agora esta definição de universalidade que apresento aos zoólogos: o que melhor diferencia o homem do animal é o cachimbo.

“Que me perdoem, quanto ao último termo deste aforismo, por fazer um sacrifício à necessidade de imaginar, de 'ser concreto', de acordo com o gosto da época e por acrescentar uma explicação simples e lúcida: conforme uma imagem retórica bem conhecida, dando o continente pelo conteúdo, dizendo cachimbo quero dizer todos os produtos que servem, mais ou menos, para provocar artificialmente o sono. Eis ainda uma verdade banal e muito clara sobre a qual jamais se pensa, isto é: todos os homens de todos os tempos históricos e pré-históricos, quaisquer que sejam sua moral, religião ou grau de civilização, sempre usaram esses produtos que as farmácias chamam de tóxicos, desde os filtros dos mágicos antigos e dos curandeiros de todas as tribos primitivas, as ervas santas dos Incas, a coca, o peyote do México, o bétele da Oceania, o ópio chinês e indiano, o haxixe e todas as variedades de cânhamos asiáticos e africanos, até os venenos modernos da Europa: éter, tabaco, morfina, heroína, cocaína e ainda o mais universal de todos, o álcool, sob suas variadas formas metropolitanas e coloniais.

“É bastante compreensível e lógico que essas drogas, destinadas a provocar mais ou menos depressa e mais ou menos lentamente o fenômeno de consciência que classifiquei, vagamente entre as recusas de agir, mas que sem dúvida incluí em meu reino Morte-na-Vida, sejam por outro lado nocivas aos instrumentos da ação, isto é, aos órgãos do corpo humano.

“Baseando-se nesta constatação bastante simplória é que, por um lado, por razões facilmente explicáveis, não sentem necessidade de usar esses produtos químicos, e, por outro lado, veem-se munidos legalmente do poder de atentar contra a liberdade privada de seus concidadãos, renunciaram de uma vez por todas a aplicar o princípio político da inação preconizado por Lao-Tse; certo número de homens julgaram ser possível acabar definitivamente com o consumo de drogas, proibindo-as.

“Tais proibições sempre têm fins aparentemente corretos, como o bem público, e objetivos menos aparentes, um pouco sujos, como por exemplo, a repopulação.

“A proibição do álcool nos Estados Unidos, assim como a do ópio, da cocaína, etc., em quase todos os países origina-se desta maneira depensar comum não somente a todos os legisladores, mas também a todos os homens que pensam 'direito', isto é, a maioria dos países civilizados.

“Quanto aos que pensam de modo diferente, respondem às proibições pela fraude ou pela inversão do ersatz. Mas todos os homens de toda sas nações continuam a provocar artificialmente em si próprios o estado de Morte-na-Vida, por meios à sua escolha.

“O tabaco nunca foi proibido, o álcool quase nunca; enfim, o consumo do ópio é recomendado na Índia e na Indochina. A parcialidade destas proibições nunca foi determinada pelo caráter mais ou menos nocivo da droga, como deveriam prová-lo, principalmente os dois primeiros exemplos, se o juízo do leitor não for completamente falseado pelas proposições da imprensa sobre os estupefacientes proibidos, bode expiatório dos higienistas e seus servidores. Assim, eu, Morfeu & Cia., que atualmente tenho o truste das drogas proibidas no mundo, pretendo responder aos jornalistas pagos por meus concorrentes para denegrir minha mercadoria. E vou defendê-la com imparcialidade.


“Sim, senhores da continência, neste assunto, como em todos os outros, aliás, existem os mais funestos mal-entendidos, desde os mais grosseiros até os mais sutis. Comecemos por observar que, sendo grande parte dos meus estupefacientes o apanágio de uma ínfima minoria, a grande maioria que os ignora faz de seus malefícios uma ideia totalmente lendária, ideia sabiamente alimentada pelos repórteres que sempre procuram o horror romântico barato. Nas regiões onde todo o mundo consome o álcool em quantidade mais ou menos grande, não existe ninguém, a não ser umas velhas solteironas, cheias de boas intenções, que creia nas vantagens da Liga Contra o Álcool. Todo mundo os conhece, em sua roda, bêbedos inveterados e exagerados, vendendo saúde e dez vezes centenários. Ao mesmo tempo, podemos rir comparando os cartazes grotescos onde pintam “o inferno dos viciados em drogas” (sic e resic e resic) – e na falta de mais ampla informação, o público calca sua opinião nestas caricaturas – comparando-os, com a inofensiva realidade.

“Inúmeras vezes, visitando meus fiéis, acompanhei com andar claudicante, os passos maiores e mais longos de célebres repórteres, aventurando-me em antros de fumo e em cafarnauns mal iluminados e decorados com trastes de toque asiático, onde os bravos e alegres rapazes contavam, dando tapas nas coxas, estórias licenciosas e até mesmo sádicas. Amargas decepções afligiram vossos espíritos embrutecidos por previsões sepulcrais, quando descobrísseis autênticos e antigos intoxicados, inveterados adeptos de estupefacientes formidáveis, mas também amigos de boa mesa, bom vinho, e, cúmulo da abominação, muitas vezes tendo rebentos igualmente imbecis, galhofeiros, gordos, bochechudos e tão prósperos quanto os pais. E, se vivêsseis algum tempo em contato com esses forçados do mal, logo veríeis que sua vida é regrada, que cuidam de seus negociozinhos, que têm as mesmas preocupações dos outros bacanais e que seu 'vício',enfim, não tem em sua vida um papel mais amplo, mais demolidor e nefasto do que outro entre os mais fantasmagóricos, a masturbação, por exemplo. Além do mais, para tornar vossa desilusão irremediável, por mais consternadora que fosse tal constatação – que os efeitos das drogas mais virulentas são incomparavelmente menos violentos do que os do álcool, pois não somente eles nunca têm delírios alucinatórios, mas levam a impudência ao ponto de jamais ficarem embriagados. Para eles, tudo se limita a uma vaga euforia. Só o terrível pó branco que é um pouco excitante.


“Desafio qualquer pessoa a contradizer-me neste ponto. É o certo abuso de meu produto que provoca às vezes os dois temíveis fantoches, meus primos, a Loucura e a Morte, mas o faz menos frequentemente do que o abuso do álcool. Sim, pois o álcool é meu melhor tóxico, e os viciados em drogas em geral são indivíduos de temperamento delicado demais para suportar longamente a embriaguez alcoólica.

“Se esta parte de meu império carece um pouco de lirismo, se todos os meus vassalos não são lá muito bonitos, a culpa é de vossa estúpida humanidade.

“Alguém poderá objetar, inteligentemente:

-Mas se por acaso, tudo o que declaras for verdadeiro (sede polidos), as terríveis proibições das quais falavas agora há pouco são certamente um pouco ridículas (olá, um ponto ganho), mas teu erro não é muito grave; evita, aos predispostos, hábitos maléficos, se não muito perigosos, pelo menos sem interesse!

“Ora, para com isto, infeliz! Quem é o miserável que pronuncia essas palavras afônicas? Eu o  repreenderia rudemente pela temeridade de seu julgamento, se não percebesse que esse mesmo infeliz, por um artifício de retórica ultragasto, sou eu mesmo. Para, portanto, infeliz, digo eu, pois não sabes por que motivo os viciados em drogas tomam drogas.

“Na noite impura de lama e sangue, onde a humanidade, assim como um esfolado arrasta sua pele, vai arrastando sua vida miserável e sofrida, minuto a minuto, montanha feita de élitros de insetos aglomerados, na noite impura de lama e lava, onde ninguém se reconhece a si próprio, eu Morfeu-o-Fantasma, eu, Morfeu-o-Vampiro, reino, tutelar e cheio de sarcasmo, sobre meus rebanhos malditos, como o rei condor rodopiando nas nuvens sobre uma horda de lebres cavalgadas pelo medo através de uma estepe árida, imensa e sem fendas como a representação geográfica da rotundidade do globo terrestre.

“E, se não Maldoror, farol do mal despertado na noite da terra, caem todas as lebres humanas fascinadas pelos círculos concêntricos que descrevem rapidamente meus olhares morfeanos. Sim, caem por terra, a cabeça separada da de seus sósias, nas torrentes subterrâneas do sono que se vão jogar no lago da morte. Mas, para alguns privilegiados somente, disseminados através de todos os tempos e de todos os espaços, multiplico a pequena morte e aperfeiçoo sua imagem até torná-la assíntota do mais autêntico trespasse, doando-lhe a poeira estrelar que cobre minhas asas, os parasitas mordedores que as povoam, os vapores que delas se elevam e os tubos de suas plumas transformadas em cachimbos.


“Mas estes seres eleitos pela maldição noturna são e permanecerão relativamente raros; meu império – infelizmente – está sujeito às leis biológicas.... As estatísticas demonstram facilmente que – com exceção de algumas personalidades superiores bastante evoluídas para fugir à maioria das contingências sociais (quantidade, se não qualidade, negligenciável) - meus súditos tornaram-se maioria, legião, unanimidade nas raças em declínio, nas tribos envelhecidas que agonizam. Pensemos no alcoolismo dos índios da América do Norte. São eles a monstruosa exceção entre os povos que vivem sua fase conquistadora de expansão. Em todo o caso, algumas miseráveis leis de proibição jamais poderão impedir essas gigantescas e fatais reações étnicas.

“Em vossas moribundas cidades da Europa, onde se gastam em seus últimos contatos todas as raças e todas as suas fases, vedes lado a lado todos os meus malditos, as vítimas dos fenômenos étnicos e as de dramas individuais, percebidos até agora pela 'psicologia dos estados', ainda desconhecida no conjunto de sua teoria e que Gilbert-Lecomte oporá, quando chegar a hora, a todas as velhas asnices derivadas da 'psicologia das faculdades' que apodrecem nas Sorbonnes deterioradas. Não há dúvida de que escapam ao meu domínio uma maioria de indivíduos que sentem a respeito das drogas uma repulsa verdadeira e invencível, que apenas reforçam os imperativos morais. São seres suja mocidade orgânica, que nada tem que ver com a idade, mas que passa tanto quanto por ela, faz com que neles predomine o 'instinto de autodestruição' do qual nunca ousamos falar e que, no entanto, tem um lugar igual na maioria das consciências humanas.

“Mas, diante desses homens ditos sadios, para quem o repouso de cada noite, mesmo reduzido ao mínimo, é ainda um fardo pesado do qual só desejariam libertar-se para agir melhor, há outros, os amantes dos longos sonos sem sonhos, aqueles que um mal desconhecido atormenta e para os quais a felicidade está na Morte-na-Vida. Há, principalmente, pesados e impiedosos, no campo fechado do corpo obscuro, os combates entre os inimigos mortais, querer-viver e não-agir, volúpia de poderes e outras mais pérfidas, do querer que agoniza em crepúsculos fúnebres, em declínios de vertigens.

“Entre os homens triplamente marcados pelo meu signo, descobrireis o resultado dessa antinomia em todos os degraus da escada dos valores. Depois de uma maioria de deformados hereditários, nos quais o gosto pelas drogas não passa de uma reação animal contra o não-senso que constitui sua vida tarada, e vereis que até alguns grandes forçados, amaldiçoados pelas tempestades e pelas borrascas que são sempre as terríveis vozes do espírito amaldiçoado, e sucumbindo à desonra de serem homens.

                                                                                                                         Jana Stovakovic

“Há, na realidade, para certo número de seres de sensibilidade super aguçada, uma consciência de estados opostos às vezes intensamente exaltada e às vezes dolorosa. Os sinais dessas crises exageram-se em alguns  predestinados, monstruosos só pelo fato de terem no fundo de si mesmos, como sua própria condenação, um elemento sobre-humano que ultrapassa e contradiz sua época, fulgurações do espírito ou energia física gigantesca. Tais elementos bastam para desajustar enormemente uma vida humana. Em primeiro lugar, por seu caráter antissocial: provocam ações irredutíveis ao julgamento universal do comum dos homens, que se vingam traçando à volta do maldito um círculo mágico que o isola; provocam a incompreensão odiosa e os constrangimentos niveladores que o forçam à amargura da solidão, também chamada 'loucura'. Por outro lado e em segundo lugar, por seu caráter antifisiológico no plano individual; a pura violência, que é sua natureza, ganha, em alguns anos, das mais fortes máquinas humanas.

“E, agora, admitamos este princípio que é a única justificativa do gosto pelos estupefacientes: o que todos os viciados pedem às drogas, consciente ou inconscientemente, não são as volúpias equívocas, a hiperacuidade sensual, a excitação e outras balelas com as quais sonham todos os que ignoram os 'paraísos artificiais'. É única é simplesmente uma mudança de estado, um novo clima onde sua consciência deverá ser menos dolorosa.

“Jamais poderemos compreender todos os inimigos, as pessoas de humor igual e serenas, os franceses médios, os burocratas da inteligência, todos aqueles cujo espírito, instrumento primitivo e grosseiro, mas inquebrável, está sempre pronto a entregar-se a seus hábitos cotidianos, sem jamais conhecer a noite sólida do embrutecimento petrificado, nem a agilidade milagrosa do clarão que cega. Eles não percebem que, em oposição aos peixes de boca redonda chamados ciclóstomos, os psiquiatras batizaram com o vocábulo 'ciclotímico' certo número de 'doentes' cuja vida decorre em alternâncias infernais e regulares de estados hipo e hiper, de depressões e de entusiasmos espirituais. Frequentemente, aqueles que conhecem a dor lancinante dessas depressões preferem recorrer ao suicídio.

“Mais incompreensível ainda será o estado de consciência assustadoramente clara. Trata-se da dor pouco comum ao homem de julgar-se de repente 'inteligente' demais. É inútil tentar fazer nascer, num espírito que não a experimentou, a aproximação deste estado que, segundo um determinismo desconhecido, num instante súbito de horror frio e tenaz do véu rasgado dos antigos mistérios. Ante a mais absoluta disponibilidade da consciência, isto significa a lembrança brusca da inutilidade do ato em curso, tornado símbolo de todo e qualquer Ato, diante do escândalo de ser, e de ser limitado, sem conhecimento de si mesmo. Essência da angústia em si que engendra os loucos, que engendra os mortos.

              

“E não é o obscurecimento reencontrado do estado de consciência normal e interessado na vida cotidiana, que pode um homem fugir da lembrança desta luz absoluta que mataria um cego vivo. Embora tenha sido apenas uma entrevista na fenda de um relâmpago, ela deixa na cabeça humana um câncer imortal. Sim, pois não podemos opor um estado habitual, que seria a norma, a outros estados que chamaríamos de patológicos, porque são percebidos imediatamente como inferiores ou superiores àquele. Há apenas estados mais ou menos dolorosos e a atitude normal do homem é provocar em si o estado de menor sofrimento. Assim sendo, a lembrança de um estado superior (por ser mais luminoso), ao estado dito normal, basta para tornar este último intolerável. Seria então preciso mudá-lo o mais frequentemente e o mais longamente possível. Infelizmente, para a clareza desta exposição, não é aqui oportuno examinar os diferentes meios capazes de fazer mudar uma consciência de planos que vão em princípio, da inconsciência absoluta à consciência total e onisciente: eis aí o princípio de toda uma ética dinâmica e imediata. Mas, no caso de que nos ocupamos, basta saber que o uso de estupefacientes, tomados em quantidade adequada, é inegavelmente um desses meios. Sim, pois cada droga gera um estado específico: a embriaguez do álcool, o kief do ópio e mais geralmente, a euforia dos alcaloides, etc. E se é impossível, no momento presente, encarar o valor mortal desses estados mais dolorosos, para não dizer inferiores ou superiores, as drogas certamente salvaram muitas vidas.

“Além do mais basta dizer que os estupefacientes são considerados por alguns místicos, por paradoxal que isso possa parecer, como meios de ascetismo. Claro que nunca poderiam ser considerados como geradores de êxtases, pois seus estados específicos estão nas antípodas, nem mesmo como favoráveis à contemplação, e sim como contravenenos. Na vossa civilização moderna, principalmente, onde o corpo humano fica degradado pelo excesso de alimento, pela febril superatividade...

“Em vão amordaçadas por vossas leis sociais, dormem entre vós energias destruidoras que poderiam fazer voar o mundo pelos ares. Por seus olhares incendiários, reconheço, nos terrenos desertos, Átila, Genghis-Khan, Tamerlão. A embriaguez do álcool é para os operários, o mais nobre protesto contra a vida sórdida que os fazem levar à espera da morte, enfim, do pensamento do Ocidente, à espera do cataclismo futuro, aureolado de revoluções, eu, Morfeu, moldo as hordas vindouras de acordo com minha rude higiene. Enquanto espero a hora, é sobre si mesmos que exijo que eles exerçam sua força de destruição. E nas mutilações voluntárias, os envenenamentos terríveis dos álcoois que fazem o ser ofegante rolar nas margens da morte, os golpes de cabeça nas paredes, todos os sofrimentos que me foram infligidos são os únicos critérios que me asseguram da existência de homens fisicamente desesperados, suficientemente mortos em sua própria individualidade para demonstrar na face o sarcasmo impassível do desinteresse perante à vida, único penhor de todos os atos sobre-humanos.”

E, enquanto, frenético, Morfeu-o-Vampiro desaparecia devorando-se a si mesmo, seus fiéis gritavam:
“Faze-nos durões e morde até matar!”

 


(Texto completo transcrito da antologia A experiência alucinógena.)


Negativland I

Percepções distorcidas pelo avesso do espectro de luz visível. Abrindo janelas no tempo para uma contemplação extrasensorial. A efemeridade de um olhar espectral sobre a riqueza do banal. Fotografia experimentosca com uma câmera de baixa pixelagem. A beleza da negação. Negativland.

Saturn Dei
necrodelphinia
mediocracy
nether

Fukushima Funk!



A foto acima mostra margaridas com deformações perto da usina de Fukushima, no Japão. O colapso de três geradores nucleares em 2011 é um grande desastre ambiental que ainda está acontecendo. É claro que não se pode reportar esse tipo de coisa com alarmismo, pode causar pânico geral. Logo surgiu uma outra explicação, verossímil mais cômoda, de que essa é uma deformação comum em margaridas, causada por um desequilíbrio hormonal, fenômeno que acontece com flores no mundo todo. Porém, moradores da região também tem reportado deformações em insetos e animais.

Apesar de ser um assunto relegado ao silêncio pela mídia - para nossa própria segurança, é claro - é possível pesquisar e achar muita informação que mostra que o desastre foi além da nossa capacidade tecnológica e vontade política para resolvê-lo. Lembrei de algumas notícias que havia lido ano passado e resolvi dar uma olhada em informações mais novas. A radiação continua se espalhando, contaminando depósitos subterrâneos de água, terra cultivável, e atravessando todo o Oceano Pacífico para chegar à costa oeste da América do Norte. Mas o governo japonês reativou a usina e 6.000 trabalhadores voltaram ao serviço no primeiro trimestre de 2015. É inevitável, necessário para manter a economia do Japão, que nos anos após o desastre, sofreu severas baixas. O mundo precisa seguir o letal curso do progresso, a energia nuclear será um fator cada vez mais constante. Fukushima é aqui.

Lembrei também de um texto que escrevi quando o impacto do desastre atingiu minha mente. Escrevi em meu caderno essa prosa poética radioativa, um tanto fatalista e palavrosa, mas mais honesta que a velha mídia e os governos do mundo, que transcrevo agora:


 

Uma titânica onda de devastação tóxica se aproxima de nós a cada momento. O sempiterno fluxo de catástrofes nucleares desencadeados pelos selvagens corcéis da ambição se eleva tal como serpente gigantesca, pronta para precipitar-se sobre nós feito silenciosa tempestade pestilenta. Já devora sem pesar a vida florescente do oceano, infectando os seres que consumimos em escala massiva e industrial. Campanhas milionárias para convencer japonês a comer peixe. O silêncio criminoso da velha mídia, cúmplice da hecatombe sorrateira que abate e seduz com a voracidade do caos. A sede do abismo. Tudo segue o ritmo quebradiço dessa óssea orquestração, o compasso aquebrantado dos músicos moribundos. Lá vem o capitão da imensa nuvem tóxica, ribombando trovões abortados, atirados do útero umbralino de sua embarcação miasmática, sorrindo com dentes de chumbo e a espada em riste. Nada se vê na imensidão negra de seus olhos que não estão lá. A vida escorre, o tempo cresce. A fumaça se dissipa e eu a trago para meu peito, leito pulmonar de efisema e revolta. Tusso os espectros de um mal maior. Assimilar o terror para melhor revelar... A iminência da dor não pode nos parar. Fukushima Funk! Você vai lembrar.



A rosa de Hiroshima, a margarida de Fukushima... continuamos colhendo as flores malsãs que o progresso cultiva no jardim da civilização. Numa violação cada vez mais violenta de sua mãe natureza, como um Édipo sinistro de órgãos industriais, nossa espécie segue o caminho de seu extermínio programado, levando muitas outras com ela.



Algumas fontes:

http://www.rt.com/news/310577-fukushima-deformed-mutated-daisies/
http://www.statesmanjournal.com/story/tech/science/environment/2015/04/06/fukushima-radiation-reached-north-american-shores/25322871/https://www.washingtonpost.com/blogs/worldviews/wp/2015/03/12/3-ways-the-fukushima-nuclear-disaster-is-still-having-an-impact-today
http://www.globalresearch.ca/28-signs-that-the-west-coast-is-being-absolutely-fried-with-nuclear-radiation-from-fukushima/5355280

A arte de H.R. Giger

"Eu pensei muito sobre a escuridão. Muito, e agora eu sei, que eu mesmo sou um vampiro. E você também, caro ouvinte, é um vampiro. E agora eu me pergunto, se toda existência nesse planeta não é vampírica.  Claro que é! Agora pense na extensão desse reconhecimento. Para mim não existe quase nada mais assustador. Bem-vindos à noite."
- H.R. Giger


Dedico essa postagem ao grande artista que ilustra a imagem de fundo deste blog. A obra de Giger penetrou no imaginário coletivo através da cultura pop. O design do terrível xenomorph para o filme Alien (1979) tornou a obra do obscuro suíço conhecida em todo o mundo. Sua visão única e sua técnica rigorosa lhe conferem o justo reconhecimento como um artista singular que conseguiu expressar, em suas pinturas e esculturas, imagens que ilustram processos profundos da psique humana.



As obras de Giger são essencialmente monocromáticas, com pouco uso de cores. São desenhos, pinturas e esculturas com uma grande carga biomecânica e psicossexual, cuja consistência obcecada durante décadas demonstra a persistência do autor em passar sua visão aterradora e fascinante para o mundo. Uma fase de sua produção foi influenciada pela leitura de autores ocultistas como Aleister Crowley e Eliphas Levi. Representações simbólicas, figuras religiosas e mitológicas e a dinâmica da energia sexual estão sempre presentes nas paisagens oníricas do artista, entre os intrincados esquemas de seu pesadelo espírito-industrial.


                                 

A obra abaixo foi produzida no auge do pavor criado pela constante tensão da Guerra Fria, quando todo dia era dia para um possível holocausto nuclear. As exposições do autor em seu país natal causaram tanto choque que eram constantemente degradadas pelas pessoas, com cuspe, comida e até merda. A pintura Atomic Children, de 1967, trouxe à tona os horrores psicológicos frutos da ansiedade atômica.


A estética biomecanóide criada por H. R. Giger captura o momento histórico da humanidade no século XX. A transmutação da esfera humana natural em um constante híbrido com a tecnologia, resultado do desenvolvimento científico desenfreado, expõe o homem invadido pela esfera mecânica, uma criação não mais submissa a seu criador. Esse processo não tem volta e submete a todos a uma realidade cada vez mais determinada pelos desígnios de uma sociedade industrial absurda e inumana.





O instinto pela reprodução e sobrevivência da espécie é retratado como é, um impulso maquinal-biológico frio e selvagem. A banalidade da vida num planeta superlotado está impressa em diversas obras, algumas mostram paisagens infindáveis de inconscientes e agonizantes rostos de bebês, como frutos sem futuro de uma lavoura malograda. A obra abaixo, Birth Machine, ganhou uma versão tridimensional e está exposta, entre outras incríveis esculturas e instalações, no H.R. Giger Museum, em Gruyéres, nos alpes suíços.


Giger morreu em 2014, aos 74 anos. Contribuiu com o design de filmes, capas de discos, videoclipes e até mesmo um jogo eletrônico chamado Darkseed, lançado em 1992. Através de sua penetração na cultura pop, o vírus biomecânico de Giger infectou uma legião de admiradores e inspirou gerações de artistas. A influência sombria de sua obra certamente não definhará tão cedo. Pois os pesadelos que habitavam sua mente foram projetados no nosso grande sonho coletivo, e suas criaturas alienígenas, porém tão íntimas, continuarão a se reproduzir e dar luz a inomináveis criações.



"Até onde eu sei, não há mais ninguém lidando com o horrível com tanto afeto quanto Giger. (...) É belíssimo o que ele pinta, e o horror é tão belamente apresentado que ele perde seu pavor."
                                                                                                                                               - Ernst Fuchs

cidade-cicatriz



cidade-cicatriz
com suas bolhas de sangue coagulado
topografia de lacerações
civilidade rançosa
suas veias congestionadas
com células mecânicas raivosas

seus nervos enferrujados
seus monumentos corruptos
seus heróis de latão

reservatórios de esgoto fresco
fluxo de galerias intestinais
glândulas administrativas
protozoários sociais

flores de carne em jardins públicos
suaves pétalas sangrentas
ainda sustém o rubor da vida

concreto ósseo sustentador
envolve as ferragens do espírito
infinitos olhos de vidro
encarando o nada

Roberto Piva transferido para reparo de vísceras

A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema
        paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida

as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
        sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
        fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
        fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
        barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
        todas as virtudes
eu não sou piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça decompõe nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos



Estes poemas foram publicados no livro Paranóia em 1963, o primeiro que o poeta paulistano publicou. Piva é considerado um expoente da poesia surrealista brasileira, inspirada pelos surrealistas franceses e pelos beatniks. Paranóia é uma perseguição desvairada por visões em São Paulo, palco de encontros oníricos com Garcia Lorca, Mário de Andrade, Lautréamont e outros fantasmas que povoavam a mente de Piva. É um manifesto contra a frieza do concreto, contra a estética urbana da passividade, contra os estandartes hipócritas das vazias vidas metropolitanas.


Poema Porrada 


Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
        cristãos fábricas palácios
        juízes patrões operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
        duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
        de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
        esqueleto
eu preciso esquecer que existo


"Paranóia foi a forma que encontrei para exorcizar a cidade e o câncer urbano das pessoas."

Poema da Eternidade sem Vísceras

Na última lua eu odiava as montanhas
minha memória quebrada não pode receber
        o amor
eu tomava sopa aguardando meus amigos desordeiros
        no outro lado da noite
este é o meu estranho emprego este mês
outro tempo quando o velho Gide se despachava para a África
        meu coração era sólido eu dançava
eu assistia uma guerra de chapéus e as brancas
        lacerações dos garotos no Ibirapuera angélico
        terreno vazio onde eu mastigava tabletes de
        chocolate branco

no próximo instante eu vi árvores e aeroplanos com bigodes
        e lágrimas de Ouro
no Ibirapuera esta noite eu perdi minha solidão
ROBERTO PIVA TRANSFERIDO PARA REPARO DE VÍSCERAS
todos meus sonhos são reais oh milagres epifanias
        do crânio e do amor sem salvação que eu sabia presos
        no topo da minha alma
meu esqueleto brilhava na escuridão
        repleto de drogas
eu nunca estou satisfeito e ando um incorrigível demônio
        lunático com os dez dedos roídos tamborilando num campo
        magnético
memória de arsênico que eu dei a uma pomba
        os olhos cinzentos do céu meu oculto Totem espiritual

Eu direi as palavras mais terríveis esta noite
        enquanto os ponteiros se dissolvem
        contra o meu poder
        contra o meu amor
no sobressalto da minha mente
        meus olhos dançam
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber se as mulheres são
        férteis e Deus caiu no mar se
        Kierkegaard pede socorro numa montanha  
        da Dinamarca?

eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido
narcóticos santos ó gato azul da minha mente!
eu não posso deter nunca mais meus Delírios
Oh Antonin Artaud
Oh Garcia Lorca
        com seus olhos de aborto reduzidos
        a retratos

        almas
                       almas
                como icebergs
                como velas
                como manequins mecânicos
e o clímax fraudulento dos sanduíches almoços  
        sorvetes controles ansiedades
eu preciso cortar os cabelos da minha alma
eu preciso tomar colheradas de
        Morte Absoluta
eu não enxergo mais nada
meu crânio diz que estou embriagado
suplícios genuflexões neuroses
        psicanalistas espetando meu pobre
        esqueleto em férias


A máxima rimbaudiana do desregramento dos sentidos era levada a sério pelo poeta. Radicalmente antropófago, desbravava os limites, rompendo as barreiras da língua, da moral, das certezas e das próprias convicções, Roberto Piva é um autor mutante. Durante sua vida seguiu escrevendo e lançando vários livros, cada um marcadamente distinto do anterior mas com a verve característica do poeta. A busca por forças ancestrais o levou ao contato e imersão no candomblé e no xamanismo, elementos muito presentes na última fase de sua produção. 




O vídeo acima é um dos últimos registros de Roberto Piva recitando uma de suas poesias, durante a gravação do documentário Assombração Urbana, sobre sua vida e obra. Você pode vê-lo no Youtube clicando aqui.
O livro Paranóia pode ser encontrado na íntegra aqui.

Jurema Preta


Sou aluno
    das árvores
alma elétrica
    nas veredas mais secretas
Catimbó sonâmbulo
    & seus palácios
meu crânio virando brasas
desfolhando meu coração
mananciais transfigurados
    na
memória

(Em Estranhos sinais de Saturno - 2008)

Espetáculos Espectrais: True Detective

Começo aqui um trabalho de "crítica" experimental. Como estreia da seção Espetáculos Espectrais, que trarão minha apreciação sobre obras audiovisuais que me abalaram o espírito, tentarei apontar aqui por que a série True Detective me cativou e a indico.

Volta e meia assisto um filme, uma série, um documentário, e sinto vontade de escrever algo a respeito dele. Talvez isso seja fazer um trabalho de crítica amadora, apontando elementos que se destacaram na minha percepção. Sem pretensões de fazer algo certinho.



Este artigo trata da história que se desenvolve e termina nos oito episódios da primeira temporada.

A série segue as narrativas das lembranças de dois detetives do estado de Louisiana, que em 1995 conduziram uma investigação sobre mulheres e crianças que desapareceram, foram torturadas e mortas. O caso veio à tona nos dias atuais com o aparecimento de uma vítima encontrada com traços muito semelhantes ao crime que iniciou a investigação de 95, e Rust Cohle e Marty Hart são entrevistados pelos atuais detetives do Departamento de Investigação Criminal do estado.

Até aí, mais uma série de crime como tantas. Mas o que distingue True Detective é sua intensidade filosófica, sua abordagem ultrarealista e sua narrativa impiedosa. A interessante dinâmica entre a dupla de detetives, interpretados por Matthew McCounaghey (Rust Cohle) e Woody Harrelson (Marty Hart), dá o tom do desenrolar da série. Cohle é um pessimista declarado, sem respeito pelas convenções e com um latente desprezo pela autoridade. Características curiosas para um policial. Já Hart faz mais o tipo, um moralista hipócrita com propensão para a violência. A honestidade brutal de Cohle incomoda seu parceiro, que o tolera por perceber que a mente estranha do pessimista se prova aguçada na investigação do crime.

Hart é o homem de família, tradicional e cristão. Esposa, duas filhas pequenas e uma bela casa. Cohle vive sozinho numa casa pequena, estéril, sem mobília e tem como companhia seus livros sobre crimes, filosofia, psicologia e mitologia. Ele não é cristão. Apesar de sua vida perfeita para os padrões da sociedade, Hart é um homem violento, reprimido, adúltero. Talvez seja justamente a repressão e a hipocrisia da sociedade sulista americana profundamente religiosa e conservadora que o impele a momentos de explosão dos impulsos mais basais, ao alcoolismo e à alienação da própria família. Sem falar nos horrores que esse caso o leva a testemunhar.


Nagy Norbert


Cohle perdeu sua filha e se divorciou da única esposa. Trabalhou por anos como policial infiltrado pela divisão de narcóticos. Se entranhou no mundo do crime de gangues de motociclistas, onde o tráfico e o abuso de drogas eram a tônica de seus dias. Flashbacks de alucinações dessa época ainda afetam a mente de Cohle aleatoriamente, ou nem tanto. Ele também é sinestésico, podendo sentir o gosto de certas vibrações na 'psicosfera'. Talvez essas anomalias químicas e traumáticas no cérebro de Cohle tenham lhe proporcionado também a habilidade de analisar as pessoas de maneira instantânea e aguçada, lhe conferindo uma espécie de 'sexto sentido' sutil e realista. Um detetive niilista psicodélico, arquétipo peculiar.

A série é marcada por elementos da psicologia de Jung, sendo a psicosfera nada menos que o inconsciente coletivo em que estamos mergulhados. Referências a filósofos e escritores da modernidade também são frequentes. O Rei Amarelo que assombra os detetives e as dezenas de vítimas do sudeste estadonunidense foi retirado de uma obra de ficção de Robert E. Chambers, colega de letras do monstruoso H.P. Lovecraft. Terríveis elementos da obra se tornaram termos misteriosos usados pela seita que preda os inocentes na desolada e pequena cidade dos pântanos de Louisiana.

Aí está aquilo cuja ressonância macabra com a realidade me fascinou. (Alerta de spoiler) Apesar do resultado efetivo do trabalho dos detetives, a origem do mal não é derrotada. Mesmo tendo encontrado aqueles que perpetraram diretamente crimes horríveis, eles não estavam sozinhos. Eles eram apenas tentáculos da besta. É aí que a perversidade da série revela uma perversidade real: a impunidade de poderosos envolvidos em pedofilia e assassinato. A Igreja, a Polícia, a Política, as augustas instituições de nossa civilização, estão envolvidas através de seus agentes em rituais que resultaram na morte de muitas pessoas. São linhagens de sangue intocáveis que seguem com práticas ancestrais, ritos de poder e dominação onde os mais vulneráveis são sempre as presas - prostitutas, órfãos, crianças pobres, famílias desoladas. Os milhares de desaparecidos cujos casos nunca são e não serão resolvidos. A membrana da ficção é transpassada por essa cruel realidade, e é justamente aí que se dá o toque ao espectador. Um toque que pode passar desapercebido pela maioria, mas certamente a ressonância com o real será notada. O true detective perceberá. Os frutos do projeto MK-Ultra, operações de controle mental, abuso sexual sistemático e impune, o Projeto Monarca e a abominável corrupção das instituições e dos corações são terrores reais. Que o leitor espectral desse blog tenha curiosidade, senso crítico e cautela para enveredar por essa senda de pesquisa.


True Detective


Em conclusão, a coragem de tocar explicitamente no núcleo bilioso de nossa sociedade hipócrita, contando a história de forma tão intensa e ousada, deu à série o reconhecimento justo de um vasto público e da crítica. Contra-indicada para corações trêmulos e expectativas padronizadas, a primeira temporada de True Detective oferece uma viagem sem volta aos abismos da mente humana. 

 E a trilha sonora é do caralho!




"The world needs bad men. We keep the other bad men from the door."
- Rust Cohle

Dissecção



Sim, eu sou cínico
Vejo o mundo como um cadáver mutante
Onde sempre tenho de fazer uma nova incisão
A causa mortis desse corpo é um eterno mistério
A cada autópsia, as regras mudam
Novas lacerações e cancros sorrateiros
Emergem da paisagem sanguínea
A cada segundo uma nova bomba
Nos folículos capilares desse corpo desértico
Imenso pântano de mortalidades
Cirurgião-célula num delírio post mortem
Brandindo o escalpelo da razão
Abrindo um corte na imaginação
Membrana sórdida que reflete a densa materialidade
E se contorce numa inclinação viciosa ao infinito
Teatro biomecânico da tragédia ancestral
O eterno retorno de uma vida banal
Tendões de aço cravados aos nossos
Movendo nossos membros inertes
Pela prosaica jornada dos vivos
Inspirando o miasma estupefaciente
Pela atmosfera-máscara de gases vitais
Paciêntes crônicos em inospitais
Esquecidos em corredores infinitos
Brancos, puros e estéreis
Que nos consuma a doença da vida
Que nos devorem os vermes da terra
Que nos sublimem os ventos que passam
A ciência pode catalogar
Transgredir, mutilar
Em nome do deus tirano Progresso
E seu séquito de sacerdotes-acadêmicos
Hecatombes microscópicas
Aos olhos serpentinos do poder
Mas que podem ser amplificadas
Íntimos genocídios revelados
Sigo minha necrópsia clandestina
De nossa rançosa civilização
Com a coragem de operar
Estômago fraco e nervos de melaço
O coração em brasa
Tentando entender
Numa obsessão altruísta
Buscando extrair
Com uma pinça pessimista
O implante macabro
Que nos foi inoculado
A apatia virulenta
A ignorância raivosa
A tristeza teimosa
E talvez possa finalmente embalsamar
Minha mente inchada num frasco de clorofórmio
E sonhar


"É belo como a retratibilidade das garras das ave de rapina; ou ainda, como a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da região cervical posterior; ou melhor, como essa ratoeira perpétua, que sempre é armada de novo pelo animal capturado, que pode pegar sozinha os roedores, infinitamente, e funcionar até mesmo escondida sob a palha; e principalmente, como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um guarda-chuva!"
- Conde de Lautréamont
(Os Cantos de Maldoror)

cismático e eterno

O prazer elétrico das vibrações
Causando o efeito desejado
Reminiscenciando orgasmos

Ritmos cerebrais pulsantes
O magnetismo universal

A mente é o campo de batalha
Calmaria insana - tempestade
Corda bamba do destino - oscila
Um sorriso torpe e imoral

Mentiras não se sustentam
Embrutecem, rugem e morrem
Lá vem ela trazendo a chama
Sacrifício cerebral - terremoto
Doces ilusões apodrecidas
Nutrem a vida que irrompe
As delícias da luta - reconquistadas

É uma guerra ou um carnaval?
Absurdo teatro de catarses
Festa da morte e da alegria
Agentes, segredos, narcóticos
Véus incendiados - desvelados
Monarcas decapitados - sublimados
Volúpias dos libertados
Amados e armados

Revoluções internas são a chave
O processo é alquímico - crítico

O tirano está em ti, assim como o escravo
Uma mão que fecha e outra que não
O veneno é a dádiva dos calmos
O desespero sublime dos aflitos
E o fervilhar dos corpos em brasa

Sem pátria, sem deus, sem causa
Estandartes anárquicos da aurora
Marcham dançando em jogos letais
Embriagados de lama e revolta
Os brotos rompendo o concreto
Neurônios-rizomas globais - totais
Implacável é a força das correntes
Serpenteando entre os céus e o mar


(2013)


Funeral aéreo

Fiquei um tempo sem escrever nada aqui, mas vamos tocar o barco. As convenções sociais-digitais não me comovem, não quero fazer deste blog mais um espaço para elas. Não há compromissos de frequência ou continuidade nesse espaço experimental, mas tentarei não relegá-lo à dispersão total.

Então vamos lá, transformar minha bile negra em combustível para essa máquina sem forma, fazer do niilismo um fator de criação, não um poço para se afogar. Segue um escrito meu que passo do papel pro virtual:

No frio e no tempo

dente de paquiderme

na encruzilhada dos ateus

deuses de fosfeno

na dança do esquecimento

pesquisas epiléticas

gramática nervosa

o horizonte vibra

se descondensa na neblina

descortina os segredos

do nada absoluto

remando asas de abutre

razão dilacerante

bico devorador do pensamento

autópsia de um morto-vivo

máquina social no coração do abismo

miragem no enxofre

bafo de vulcão

numa existência vulgar

resistência fugaz

sem âncora e sem mar

funeral aéreo

a catástrofe da paz




[ No Tibete há uma prática mortuária que consiste em oferecer os corpos dos mortos aos abutres num ritual de transmigração. Esse é o funeral aéreo (sky burial). ]