Espetáculos Espectrais: True Detective

Começo aqui um trabalho de "crítica" experimental. Como estreia da seção Espetáculos Espectrais, que trarão minha apreciação sobre obras audiovisuais que me abalaram o espírito, tentarei apontar aqui por que a série True Detective me cativou e a indico.

Volta e meia assisto um filme, uma série, um documentário, e sinto vontade de escrever algo a respeito dele. Talvez isso seja fazer um trabalho de crítica amadora, apontando elementos que se destacaram na minha percepção. Sem pretensões de fazer algo certinho.



Este artigo trata da história que se desenvolve e termina nos oito episódios da primeira temporada.

A série segue as narrativas das lembranças de dois detetives do estado de Louisiana, que em 1995 conduziram uma investigação sobre mulheres e crianças que desapareceram, foram torturadas e mortas. O caso veio à tona nos dias atuais com o aparecimento de uma vítima encontrada com traços muito semelhantes ao crime que iniciou a investigação de 95, e Rust Cohle e Marty Hart são entrevistados pelos atuais detetives do Departamento de Investigação Criminal do estado.

Até aí, mais uma série de crime como tantas. Mas o que distingue True Detective é sua intensidade filosófica, sua abordagem ultrarealista e sua narrativa impiedosa. A interessante dinâmica entre a dupla de detetives, interpretados por Matthew McCounaghey (Rust Cohle) e Woody Harrelson (Marty Hart), dá o tom do desenrolar da série. Cohle é um pessimista declarado, sem respeito pelas convenções e com um latente desprezo pela autoridade. Características curiosas para um policial. Já Hart faz mais o tipo, um moralista hipócrita com propensão para a violência. A honestidade brutal de Cohle incomoda seu parceiro, que o tolera por perceber que a mente estranha do pessimista se prova aguçada na investigação do crime.

Hart é o homem de família, tradicional e cristão. Esposa, duas filhas pequenas e uma bela casa. Cohle vive sozinho numa casa pequena, estéril, sem mobília e tem como companhia seus livros sobre crimes, filosofia, psicologia e mitologia. Ele não é cristão. Apesar de sua vida perfeita para os padrões da sociedade, Hart é um homem violento, reprimido, adúltero. Talvez seja justamente a repressão e a hipocrisia da sociedade sulista americana profundamente religiosa e conservadora que o impele a momentos de explosão dos impulsos mais basais, ao alcoolismo e à alienação da própria família. Sem falar nos horrores que esse caso o leva a testemunhar.


Nagy Norbert


Cohle perdeu sua filha e se divorciou da única esposa. Trabalhou por anos como policial infiltrado pela divisão de narcóticos. Se entranhou no mundo do crime de gangues de motociclistas, onde o tráfico e o abuso de drogas eram a tônica de seus dias. Flashbacks de alucinações dessa época ainda afetam a mente de Cohle aleatoriamente, ou nem tanto. Ele também é sinestésico, podendo sentir o gosto de certas vibrações na 'psicosfera'. Talvez essas anomalias químicas e traumáticas no cérebro de Cohle tenham lhe proporcionado também a habilidade de analisar as pessoas de maneira instantânea e aguçada, lhe conferindo uma espécie de 'sexto sentido' sutil e realista. Um detetive niilista psicodélico, arquétipo peculiar.

A série é marcada por elementos da psicologia de Jung, sendo a psicosfera nada menos que o inconsciente coletivo em que estamos mergulhados. Referências a filósofos e escritores da modernidade também são frequentes. O Rei Amarelo que assombra os detetives e as dezenas de vítimas do sudeste estadonunidense foi retirado de uma obra de ficção de Robert E. Chambers, colega de letras do monstruoso H.P. Lovecraft. Terríveis elementos da obra se tornaram termos misteriosos usados pela seita que preda os inocentes na desolada e pequena cidade dos pântanos de Louisiana.

Aí está aquilo cuja ressonância macabra com a realidade me fascinou. (Alerta de spoiler) Apesar do resultado efetivo do trabalho dos detetives, a origem do mal não é derrotada. Mesmo tendo encontrado aqueles que perpetraram diretamente crimes horríveis, eles não estavam sozinhos. Eles eram apenas tentáculos da besta. É aí que a perversidade da série revela uma perversidade real: a impunidade de poderosos envolvidos em pedofilia e assassinato. A Igreja, a Polícia, a Política, as augustas instituições de nossa civilização, estão envolvidas através de seus agentes em rituais que resultaram na morte de muitas pessoas. São linhagens de sangue intocáveis que seguem com práticas ancestrais, ritos de poder e dominação onde os mais vulneráveis são sempre as presas - prostitutas, órfãos, crianças pobres, famílias desoladas. Os milhares de desaparecidos cujos casos nunca são e não serão resolvidos. A membrana da ficção é transpassada por essa cruel realidade, e é justamente aí que se dá o toque ao espectador. Um toque que pode passar desapercebido pela maioria, mas certamente a ressonância com o real será notada. O true detective perceberá. Os frutos do projeto MK-Ultra, operações de controle mental, abuso sexual sistemático e impune, o Projeto Monarca e a abominável corrupção das instituições e dos corações são terrores reais. Que o leitor espectral desse blog tenha curiosidade, senso crítico e cautela para enveredar por essa senda de pesquisa.


True Detective


Em conclusão, a coragem de tocar explicitamente no núcleo bilioso de nossa sociedade hipócrita, contando a história de forma tão intensa e ousada, deu à série o reconhecimento justo de um vasto público e da crítica. Contra-indicada para corações trêmulos e expectativas padronizadas, a primeira temporada de True Detective oferece uma viagem sem volta aos abismos da mente humana. 

 E a trilha sonora é do caralho!




"The world needs bad men. We keep the other bad men from the door."
- Rust Cohle

Nenhum comentário:

Postar um comentário