Dissecção



Sim, eu sou cínico
Vejo o mundo como um cadáver mutante
Onde sempre tenho de fazer uma nova incisão
A causa mortis desse corpo é um eterno mistério
A cada autópsia, as regras mudam
Novas lacerações e cancros sorrateiros
Emergem da paisagem sanguínea
A cada segundo uma nova bomba
Nos folículos capilares desse corpo desértico
Imenso pântano de mortalidades
Cirurgião-célula num delírio post mortem
Brandindo o escalpelo da razão
Abrindo um corte na imaginação
Membrana sórdida que reflete a densa materialidade
E se contorce numa inclinação viciosa ao infinito
Teatro biomecânico da tragédia ancestral
O eterno retorno de uma vida banal
Tendões de aço cravados aos nossos
Movendo nossos membros inertes
Pela prosaica jornada dos vivos
Inspirando o miasma estupefaciente
Pela atmosfera-máscara de gases vitais
Paciêntes crônicos em inospitais
Esquecidos em corredores infinitos
Brancos, puros e estéreis
Que nos consuma a doença da vida
Que nos devorem os vermes da terra
Que nos sublimem os ventos que passam
A ciência pode catalogar
Transgredir, mutilar
Em nome do deus tirano Progresso
E seu séquito de sacerdotes-acadêmicos
Hecatombes microscópicas
Aos olhos serpentinos do poder
Mas que podem ser amplificadas
Íntimos genocídios revelados
Sigo minha necrópsia clandestina
De nossa rançosa civilização
Com a coragem de operar
Estômago fraco e nervos de melaço
O coração em brasa
Tentando entender
Numa obsessão altruísta
Buscando extrair
Com uma pinça pessimista
O implante macabro
Que nos foi inoculado
A apatia virulenta
A ignorância raivosa
A tristeza teimosa
E talvez possa finalmente embalsamar
Minha mente inchada num frasco de clorofórmio
E sonhar


"É belo como a retratibilidade das garras das ave de rapina; ou ainda, como a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da região cervical posterior; ou melhor, como essa ratoeira perpétua, que sempre é armada de novo pelo animal capturado, que pode pegar sozinha os roedores, infinitamente, e funcionar até mesmo escondida sob a palha; e principalmente, como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecção de uma máquina de costura e um guarda-chuva!"
- Conde de Lautréamont
(Os Cantos de Maldoror)

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