A destruição do mundo

   A Lei é aquilo que vem do Corpo
  Abriu-se em sua mente um abismo de Sonho e Poesia
   E no Nada se formam todas as Coisas


                                                     
Alex Grey



O que é a destruição do mundo?

Nossa pequenez ocidental é incapaz de refletir sobre a questão sem uma apreciação bélica. A sublimação deve acontecer através do fogo. Metal, chumbo, macaco, lagarto. Que somos nós na máquina do mundo? Um vírus, como nos diz o senso comum cínico da atualidade, ou algum tipo de ser quintessencial, segundo o pensamento mágico daqueles viciados em esperança... que importa? A realidade escorre sobre nossa percepção turva e pouco podemos fazer dela, enquanto equilibramos todas as sutilezas e inutilezas, obras e dobras, obrigações e desejos do carrossel extasiante da vida.

O império ainda vive, mas agoniza. Suas entranhas-mecanismos de carnificina estão expostas, por mais que ainda tente cobrir suas vergonhas com as túnicas da propaganda e do espetáculo. Nem por isso está mais vulnerável, pelo contrário, está mais irascível e paranoico. Açoitando as massas com suas tropas de choque para manter o fluxo em suas artérias artificiais, seus aparatos de manutenção de uma sobrevida macabra são colocados em força total. Deus-cadáver de um templo invisível, mantido pelo seu secto de ratos aristocráticos, reunidos em câmaras e palácios, igrejas e plenários, tribunais e quartéis, roendo seus próprios rabos com os nervos fervilhando de medo.

A resistência cresce, e não só resiste, faz pressão. Da margem ao estômago do sistema, organismos patógenos para o funcionamento do grande esquema agem e transformam, infectam e transbordam. Se organizando em células de rebeldia, operam caoticamente em explosões desordenadas. Em afrontas suicidas ou em articulações programáticas, se alimentando do lixo decomposto nas galerias do grande cadáver que respira. Eles mordem e esperam, fazem fogueiras e feitiços, livros-bomba ecoando pelo espectro no furor da madrugada. O rugido que recusa ser enjaulado, destruindo os grilhões da exploração, desmistificando os códigos da ilusão. A tensão cresce, o ar sufoca.

Nas encruzilhadas e trincheiras é hora de alimentar os canhões. O passado está condenado a ruir, será dolorido, e talvez principalmente para nós. O tubo umbilical infecto que nos liga a essa matriz decadente precisa ser friamente extirpado.  Saudades e nostalgias serão amargos venenos, velhos amores e dores queridas, meros sortilégios de um fantasma que se esvai. Faz-se necessário romper, radicalmente. Somos todos massa disforme no rolo compressor da história. Erigir monumentos e hastear bandeiras são gestos proscritos. A evolução pode nos levar a um fim, de fato. Nada é garantido, não contaremos com as argúcias do velho constructo chamado progresso. A constante é o caos, navegar é o mote. Mergulharemos nas constelações incertas do devir, empenhando-nos nos prazeres e mistérios do criar e do destruir. O que é a destruição do mundo? Talvez seja o seu amanhecer. 




KALI MA!

Poema de Heiner Müller

 

No restaurante do hotel a inocência dos ricos
O olhar tranquilo sobre a fome do mundo
O meu lugar é entre as cadeiras
O meu sonho é poder cortar a garganta rugosa da viúva da
Mesa ao lado com a faca do empregado de mesa
Que lhe trincha o lombo do cordeiro
Mas sei que nunca hei de cortar esta garganta
Sei que durante toda a minha vida jamais farei tal coisa
Eu não sou Jesus
O que traz a espada
Eu sonho com espadas
Sabendo que a exploração de que faço parte
de durar muito mais tempo do que eu
muito mais tempo do que eu há de durar a fome que me alimenta
E os poetas, eu sei, mentem demais
Villon ainda era capaz de abrir a boca
Contra o clero e a nobreza pois não tinha onde cair morto
E conhecia as prisões por dentro
Brecht mandou Ruth Berlau para Espanha e na Dinamarca
Escreveu “AS ARMAS DA DONA CARR“
Gorki enquanto atravessava Moscovo num coche de dois cavalos
Detestava a pobreza
PORQUE É HUMILHANTE
Porque só aos pobres
Maiakowski já se tinha silenciado com um revólver
As mentiras dos poetas estão gastas
Pelos horrores do século
Nos balcões do banco mundial
O sangue seco cheira como cosmético frio
O medo da violência é a sua cegueira
O vagabundo dorme à frente do ESSO SNACK & SHOP
Refuta a lírica da revolução
Eu passo de táxi 
Posso  dar-me  a esse luxo
Benn falava muito bem mas nunca ganhou dinheiro com os seus poemas
E poderia ter batido a bota escalpelado e com doenças venéreas
À noite no hotel está o meu palco por montar
Os textos chegam absurdos 
A linguagem rejeita o verso branco
Em frente ao espelho as máscaras quebram-se
Não há um único actor que aceite o meu texto 
Eu sou o drama
MÜLLER NÃO ÉS UM OBJETO POÉTICO
ESCREVA PROSA

O meu pudor precisa do meu poema

 "MÜLLER NA CORTE DE HESSE"



Heiner Müller foi um dramaturgo alemão do século XX. Contemporâneo e colega de Brecht, produziu uma obra singular, sendo também reconhecido como poeta, prosaista e autor de textos teóricos. Vários de seus textos foram musicados pela banda Mão Morta, e serão expostos nesse blog no futuro. 

Mão Morta - Nuvens Bárbaras

"A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos."
- Faixa extraída do 18 de Brumário


Apresento como primeira atração musical nesse blog, a banda portuguesa Mão Morta:




Em atividade desde os anos 80, é uma banda de enorme amplitude musical. Munidos de intensidade poética, profundidade filosófica, experimentação estética e muita ousadia, os Mão Morta seguem até hoje lançando discos e fazendo shows.

Amplamente conhecida em Portugal, ainda é desconhecida no Brasil, mas possui um secto oculto de admiradores. Pude testemunhar que isso é real durante a única apresentação que eles fizeram no Brasil, na Virada Cultural de São Paulo em 2013. Foi tenebroso.

A música acima é de seu disco de 2014, Pelo Meu Relógio São Horas de Matar. Como dito, não são uma mera banda de rock. Ouçam, e aqui está a letra para melhor apreciação da obra:

"Ouço as rodas dentadas do devir
A esmagar os tendões do tempo
Derrubando as árvores
Estilhaçando as pedras
Aproximando as ruínas
As tempestades tumultuosas que varrem as trevas
Trazendo o ocaso de um mundo em extinção
Engalfilhando as águas
As chuvas dos céus
Deixando as nuvens cair como granizo em flor
As cidades devastadas pela veloz língua do vento
O fogo crematório saltando
Enfunado
Cheio de ventos e marés
Numa velha imagem desenhada
Pela mão venenosa de um pesadelo
Vinda do sono
Em direcção ao princípio de todas as coisas
Os músculos vencidos
O corpo retende
Sem forças
Carcomido pela doença
Vergado pela dor
O eco batendo
À procura de uma resposta
Que só a húmida terra tumular
Pode fornecer

O presente envenenado pelas nuvens da barbárie
O futuro já não é
Uma fonte de esperança
Só nos resta a indigência
Ou morrer de morte certa
Como heróis de pechisbeque
Neste grande fogaréu
De aparato e opulência
Em que afara o capital

O futuro já não é o que era
Esgotada a reserva de alento
Que transforma a vontade em metáfora do novo
E em renovação de expectativas
Tudo parece caminhar para pior
Sem a perspectiva de um qualquer golpe de asa
Capaz de inverter essa direcção

E com isso
Cresce a certeza de uma enorme explosão incontrolada
E de consequências imprevisíveis
E que pode significar o fim doloroso
De todas as referências
Mas também o início
De uma aventura sem par
De exaltação da vida
E da entrega incondicional
Às paixões mais arrebatadoras
E amotinadas"

www.mao-morta.org/

Amarras e desejos





Dia dos namorados. Data maior do capitalismo em tempos de crise, o amor comerciado aquece o coração da economia e anestesia o vazio dessa era sintética. A Alemanha arquivou hoje o processo gerado com a denúncia de espionagem feita pela NSA contra o estado alemão. “Não há provas”, diz o judiciário. Os soldados israelenses que mataram dois garotos palestinos que estavam sozinhos numa praia são inocentados. “Foi um erro”, diz o judiciário. O espetáculo de comoções globais contra os abusos das elites militares do mundo hoje desvanece, e o sistema reafirma sua intocabilidade soberana. Os mecanismos de lei e ordem se atualizam e encobrem as chagas abertas pelos seus outros tentáculos afiados. 

O que esperar dos poderes estabelecidos? Que eles mesmos se reformem, vistam um rosto amigável e honesto e mudem a estrutura da pirâmide cuja ponta dominam? Hunter Thompson dizia que numa sociedade fechada onde todos são culpados, o único crime é ser pego. Hoje somos obrigados a revisar essa máxima, pois o que significa ser pego quando todos os âmbitos da lei estão no mesmo conluio que os chefões do crime? A corrupção é endêmica à hierarquia. Enquanto vivermos em um ambiente assim configurado – e, principalmente, numa mentalidade assim configurada – assistiremos o cortejo de crimes e castigos públicos e privados, os elegantes suplícios de elites flagradas com as mãos sujas de seu negócio mais antigo, milenar: a exploração. Enquanto algumas personalidades ilustres, como os chefões da FIFA no momento, são levadas à aristocrática guilhotina legal, a mão que controla as marionetes é esquecida. 

E o extermínio sistemático segue prosperando, livrando nossas abarrotadas metrópoles e inóspitos campos das populações indesejáveis, recicláveis, sem privilégios nem heranças. As capitanias hereditárias seguem seu fluxo infecto de proles já destinadas ao poder desde o berço. Forças contestatórias são esmagadas ou sutilmente cooptadas como oposição controlada, ostentando bandeiras hipócritas e cultivando sua popularidade com as vãs esperanças e ilusões legítimas. Os impérios da mídia perdem sua força, mas desesperadamente atualizam suas técnicas e linguagens para continuar parasitando e confundindo as mentes de novas gerações mais exigentes e desconfiadas. 

Seremos todos uma massa disforme esmagada pelo rolo compressor da história, mas a consciência disso não nos relegará à apatia e à conformidade. É preciso romper com as cumplicidades entre nossos íntimos desejos e os interesses dessa máquina titânica. Declarar guerra às falsificações de nossos próprios sentimentos e pensamentos, projetados no espelho distorcido que  é a ideologia do controle, propagada pelas instituições que são os pilares dessa civilização condenada. Falsificações que tomam formas familiares, sedutoras, emocionais e culturais, inoculadas pela escola e pela publicidade, pelo direito e pela economia, pelo entretenimento e pela política. Prisões conceituais que nos condenam à decomposição, cercando-nos de grades reais e simbólicas que nos separam da realização dos legítimos impulsos humanos, de viver livre de sujeições. A grande guerra de hoje é empreendida no plano mental. Conformidade ou resistência, percepção ou ilusão. Uma posição firme precisa ser tomada dentro de nossas cabeças, o primeiro passo para uma ação – efêmera ou não – que sabote o atual estado das coisas. Avante! Para o nada!

"A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje conduzem sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo triunfal, como de praxe. Eles são chamados bens culturais."
- Walter Benjamin


Zarpar

Tenho fé no fim
 não sou ave tropical
 de belas cores e doce canto
sou o urubu

negro como a noite

que pousa no mastro do navio

navegando o mar de sangue

arauto impiedoso 

de um passado vindouro
...


"Tornar cultiváveis regiões onde até agora viceja apenas a loucura. Avançar com o machado afiado da razão, sem olhar para direita nem para a esquerda, para não sucumbir ao horror que acena das profundezas da selva. Todo solo deve alguma vez ter sido revolvido pela razão, carpido do matagal do desvairio e do mito."
- Walter Benjamim


Começo aqui uma nova experiência. Um espaço cibernético onde despejarei exortações poéticas, análises serpentinas, delírios motores. Compartilharei fragmentos de nossa vasta cultura global, relegados ao abafamento pelo oceânico fluxo de informações. Experimentos midiáticos radicais, imagens fantásticas e realidades sórdidas. Isso é um exercício, mas não uma simulação. Sem respeito algum pelas convenções estéticas, linguísticas e morais de uma comunicação gerencial estéril. Contra o esforço retrógrado e dominante de fazer prevalecer as estruturas e valores do passado. Reconhecer os mecanismos mais pérfidos desse esforço que sabota a evolução e destrinchar novos caminhos no devir. Poder canalizar o que há de melhor e o de pior em meu espírito, sem hipocrisias e sem nobilidades. Uma ação de liberdade psíquica, ou de autoexorcismo para minha saúde mental, canalizando meus pensamentos para o mundo. Mergulharemos nas entranhas do inconsciente coletivo, nas mazelas e barbáries de nossa civilização, nos inóspitos territórios do desconhecido e do proibido. Sem pretensões, vejamos onde isso nos leva. Se você, caro ser que me lê, sentir alguma afinidade com o conteúdo aqui veiculado, será um prazer navegar contigo rumo a paisagens incertas e vertiginosas.




"O que define precisamente as máquinas desejantes é o seu poder de conexão ao infinito, em todos os sentidos e em todas as direções.” 
– Deleuze & Guattari