Uma outra cidade

"Toda cidade é necrópole, é cemitério. O homem é o único animal que armazena seus mortos. Quer dizer, fica empilhando morto e a cidade tem que ficar em torno pra ficar velando aqueles mortos" - Roberto Piva


Dirigido pelo excelente cineasta paulistano Ugo Giorgetti, o documentário Uma outra cidade conta a São Paulo dos anos 50 e 60 vivida pelos poetas Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo de Haro, Claudio Willer, Roberto Piva e Jorge Mautner. Este último, notório por sua grande carreira musical, é com certeza o mais conhecido desse bando. Piva, xamã panfletário do caos, é um de meus autores preferidos e já dediquei um artigo nesse blog para sua poesia convulsiva. Claudio Willer é um autor ainda em atividade com o qual tive meu primeiro contato através de suas traduções: Lautreámont, Allen Ginsberg e Antonin Artaud são alguns dos autores que ele traduziu para o português. Franceschi e Haro conheci através desse filme e já estou muito curioso para conhecer mais sobre suas obras.

A cidade vista pelos olhos desses jovens artistas incendiários é um banquete de cenas oníricas e memórias ricamente turvas, reveladas em entrevistas com os autores que introduziram na literatura brasileira uma expressão original das rupturas feitas pelos beatniks e pelos surrealistas, rompendo com todo rigor estético ainda vigente na poesia nativa. Eram ávidos leitores de poetas ainda obscuros como Jorge de Lima e Murilo Mendes, assim como dos universais Fernando Pessoa e Drummond. O formalismo dos círculos literatos e universitários gerava uma aversão mútua entre esses grupos e os poetas. Como diz Piva em um trecho, o grupo anárquico formado por eles estava de saco cheio de São Paulo e seus poetas cagados. Ofereceu para eles esse chá de

Bules, bílis e bolas


Nós convidamos todos a se entregarem à dissolução e ao desregramento
A vida não pode sucumbir no torniquete da consciência
A vida explode sempre no mais além
Abaixo as faculdades e que triunfem os maconheiros
É preciso não ter medo de deixar irromper a nossa alma fecal

Metodistas, psicólogos, advogados, engenheiros, estudantes, patrões, operários, químicos, cientistas, contra vós deve estar o espírito da juventude
Abaixo a Segurança Pública, quem precisa disso?
Somos deliciosamente desorganizados e usualmente nos associamos com a liberdade
Procuramos amigos que não sejam sérios: macumbeiros, os loucos confidentes, imperadores desterrados, freiras surdas, cafajestes com hemorroidas e todos os que detestam os sonhos incolores da poesia das arcadas

Nós sabemos muito bem que a ternura de lacinhos é um luxo protozoário
Sede violentos como uma gastrite!
Abaixo as borboletas douradas, olhai o cintilante conteúdo das latrinas
A nossa batalha foi iniciada por Nero e se inspira nas palavras moribundas
"Como são lindos os olhos deste idiota"


(Roberto Piva. Transcrição do documentário.)



As paisagens da cidade eram digeridas por seus cérebros antropófagos e transformadas em poesia. Costurando a malha urbana pela trilha esparsa de livrarias e bares, não eram só os lugares característicos e cheios de vida de São Paulo que davam vida a imaginação dos poetas. Rodrigo de Haro, em uma incursão pelo bairro da Liberdade para frequentar o cinema local que passava os lançamentos de filmes japoneses que os poetas adoravam, escreveu:

Visita à Igreja dos Enforcados

No passo familiar que trilho
suando palmo a palmo
fechado pela sombra dos edifícios
de três pisos - três infernos
ninguém está para me saudar
nada encontro de parecido
com um desesperado abraço
ninguém espera minha capa
para fugir embuçado
nem flor da noite pendurada na trave a ruir
nem velas acesas
nem cavalos alveolados
com as narinas abertas como grandes crateras
nem tu! espada da morte
gladio oculto atrás de cada porta
dama da noite
dama de espadas
dama da forca
no passo familiar ninguém vem abraçar-me
mas aqui repouso
no beco sem liteira
diante de três paredes
rodeado de ladridos meu coração
e vejo
ai! que vejo
levantar-se a forca
decepar-se o porco
encerar-se a corda
piso cuidadoso
a laje pegajosa
estalo todos os meus ossos
sei que estou sozinho diante do adro
apagou-se toda luminária
é a igreja dos enforcados


(Rodrigo de Haro. Transcrito do documentário.)

Uma outra cidade
nos mostra a maior cidade da América Latina numa época de peculiar efervescência anterior à ditadura militar e à massificação, sob o olhar de rapina de um grupo de artistas que se mantiveram à margem da tradição e da popularidade mas que são fonte viva e pulsante de arte inovadora e destemida.

SOBREVIVEREMOS
(RUÍNAS ROMANAS)


Quantos poetas já não estiveram aqui
quantos já não escreveram
sobre a ofuscante aniquilação
diante desses dramáticos perfis minerais
quase natureza
reduzidos a não mais que montanha
tão perto da pedra original
barro anterior à forma
fronteira da mão que trabalha, do vento, da água
neles ressoa a ensandecida voz do oco, do cavo, da fresta
os silvos do vento
no silêncio matizado de sussurros
e agora também sou dos que enxergam
o informe
monstruoso passado
escultores do avesso os reduziram a isso
os autores do cruel teorema
que nos condena ao presente
e repete que nada sabemos e nada vale a pena
pois passado e futuro só existem
como passo para a informe eternidade
a custo divisamos lá fora a realidade logo ali
outro lugar
onde existiremos menos ainda
nós é que somos os fantasmas
e a solidez é o que está aí,
nas ruínas
a dizer-nos que isto -
nada
- é tudo o que temos


(Claudio Willer)

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