HERACLES 2 OU A HIDRA - HEINER MÜLLER

Esta é a transcrição completa de uma alucinante prosa poética do dramaturgo alemão Heiner Müller, já presente por aqui. Decidi não dar respiros ao texto inserindo imagens ou espaços para manter a continuidade vertiginosa e o ritmo progressivo que creio fazerem parte dessa experiência. Coloque uma música longa e viajada, respire fundo e vá nessa. A batalha o espera.

                                                                                                                                                   Alex Grey

Ele acreditou por muito tempo que ainda atravessava a floresta no vento entorpecedoramente quente que parecia soprar de todos os lados e balançava as árvores como serpentes, no imutável crepúsculo do rastro de sangue que mal se via sobre o chão simetricamente oscilante, sozinho com o animal na batalha. Nos primeiros dias e noites, ou eram apenas horas, como ele poderia medir o tempo sem céu, ele ainda, às vezes se perguntava o que poderia estar debaixo do chão, que sob seus passos movia ondas como se respirasse, quão fina a pele sobre o desconhecido, e quanto tempo ela o tiraria das entranhas do mundo. Parecia-lhe, quando ele pisava com mais cuidado, que o chão no qual ele acreditava que cederia ao seu peso vinha de encontro ao seu pé, até mesmo o atraía com um movimento de sucção. Ele também teve a nítida sensação de que seus pés ficaram mais pesados. Ele contou as possibilidades. 1) Seus pés ficaram mais pesados e o chão sugava seus pés. 2) Ele sentia seus pés ficarem mais pesados porque o chão os sugava. 3) Ele tinha a impressão de que o chão sugava seus pés porque eles ficaram mais pesados. As perguntas ocuparam-no por um tempo (anos horas minutos). Ele encontrou a resposta na progressiva sensação de vertigem causada pelo vento que soprava concentricamente: seus pés não estavam ficando mais pesados, o chão não estava sugando seus pés. Tanto uma como a outra eram uma alucinação devido a sua pressão sanguínea que caía. Isto o tranquilizou e ele andou mais rápido. Ou só acreditou andar mais rápido? Quando o vento aumentou ele foi tocado com mais frequência no rosto pescoço mãos por árvores e galhos. O contato era antes de tudo agradável, um carinho ou como se eles provassem a suavidade de sua pele, se bem que superficialmente e sem algum interesse especial. Então a floresta pareceu ficar mais densa, o estilo do contato transformou-se, o carinho converteu-se em uma medição. Como em um alfaiate, ele pensou, quando os ramos envolveram sua cabeça, depois o pescoço, o peito, a cintura etc., a floresta parecia estar interessada até mesmo em seu passo, até que eles o mediram da cabeça aos pés. A maneira automática como isto ocorria irritava-o. Quem ou o que guiava o movimento destas árvores, galhos ou, o que sempre lá estava interessado no número do seu chapéu medida do colarinho tamanho do sapato. Poderia esta floresta, que não se comparava a nenhuma floresta que ele tinha conhecido e “atravessado”, ser afinal, ainda, denominada floresta. Talvez ele próprio já estivesse muito tempo a caminho, por uma era, e florestas eram afinal apenas o que esta floresta era. Talvez a denominação não fizesse mais que representar uma floresta e todos os outros sinais tornaram-se há muito, aleatórios e substituíveis; também o animal que para matá-lo, ele percorria esta realidade ainda provisoriamente denominada floresta, o monstro a ser morto, que havia transformado o tempo em um excremento no espaço, era apenas a nomeação de algo não mais conhecível, um nome tirado de um livro velho. Somente ele, o anônimo, permaneceu idêntico a si na sua longa e suada travessia pela batalha. Ou também era diferente dele aquilo sobre suas pernas, estas sobre um chão que dançava cada vez mais rápido. Ele pensava ainda nisto quando a floresta agarrou-o novamente. A realidade estudava seu esqueleto, número, força, disposição e função dos ossos, a ligação das articulações. A operação era dolorosa. Ele esforçou-se para não gritar. Jogou-se para frente com um impulso para fora desse abraço. Ele sabia que nunca tinha corrido tanto. Ele não deu mais um passo sequer, a floresta interrompeu a velocidade, ele ficou no cerco que se formou agora em volta dele e que comprimia suas vísceras, esfregava seus ossos, quanto tempo ele poderia aguentar a pressão, e compreendeu no pânico crescente: a floresta era o animal, há tempos tinha sido a floresta que ele acreditou percorrer, o animal, que o conduzia no andamento de seus passos; as ondas do chão, sua respiração e o vento, seu ar, o rastro que ele seguia, seu próprio sangue, do qual a floresta, que era o animal, tirava suas provas, desde quando, quanto sangue tem um ser humano. E que ele sempre o soube, só que sem nomes. Algo como um relâmpago sem começo nem fim descreveu com sua circulação sanguínea e nervos um circuito incandescente. Ele se ouviu rir quando a dor assumiu o controle de suas funções corporais. Isto soou como um alívio: nenhuma reflexão mais, era esta a batalha. Adaptar-se aos movimentos do inimigo. Afastar-se deles. Antecipar-se a eles. Ir de encontro a eles. Adaptar-se e não se adaptar. Adaptar-se através da não adaptação. Atacar recuando. Recuar atacando. Ao primeiro golpe garra pontada antecipar-se, ao segundo retroceder. Vice-versa. A sequência muda e não muda. Ir de encontro ao ataque com o mesmo e (ou) outro movimento. Paciência da faca e força dos machados. Ele nunca contou suas mãos. Ele não precisava contá-las agora. Por toda parte onde sempre quando precisou delas elas fizeram o seu trabalho, pulsos se necessários, os dedos, um a um, disponíveis, as unhas à parte, os cantos do cotovelo. Seus pés sustentavam-no na revolta contra a gravitação do chão que rodava cada vez mais rápido, a ligação do inimigo ao campo de batalha, o colo que queria abrigá-lo. A velha equação. Todo colo no qual ele veio de alguma forma cair quis, vez por outra, ser seu túmulo. E a velha canção. AH FIQUE COMIGO E NÃO VÁ EMBORA NO MEU CORAÇÃO ESTÁ O MAIS BELO LUGAR. Escandida pelo estalar de sua cervical na sufocante garra maternal. MORTE ÀS MÃES. Seus dentes lembraram-se do tempo antes da faca. Na confusão dos tentáculos que não se distinguiam das facas e machados giratórios, na das facas e machados giratórios que não se distinguiam dos tentáculos, na das facas machados tentáculos que não se distinguiam das explosivas zonas minadas tapetes de bombas reclames luminosos culturas de bactérias, na das facas machados tentáculos zonas minadas tapetes de bombas reclames luminosos culturas de bactérias que não se distinguiam das suas próprias mãos pés dentes no lapso de sangue gelatina carne provisoriamente denominado batalha, tanto que para golpes que, às vezes, lhe ocorriam contra a própria substância, a dor, ou melhor, o súbito aumento das incessantes dores rumo ao não mais reconhecível era o seu único barômetro, no contínuo aniquilamento sempre novamente voltando às menores partes de sua construção, sempre se recompondo das suas ruínas numa contínua reconstrução; às vezes, ele juntava mal as partes, mão esquerda no braço direito, osso ilíaco nos ossos do braço, na pressa ou por distração ou aturdido pelas vozes que lhe cantavam no ouvido, coros de vozes FIQUE NOS LIMITES DESABAFE DESISTA ou porque lhe era maçante, sempre a mesma mão no mesmo braço cortar tentáculos sempre crescentes cabeças atrofiadas pescoço, trazer dos membros o que resta para cima, colunas de sangue; às vezes, ele retardava sua própria reconstrução, avidamente esperando pelo total aniquilamento com esperança no nada, a pausa interminável, ou talvez por medo da vitória que só seria atingida pela total destruição do animal que era sua morada; fora isto, o nada talvez já esperasse por ele ou por ninguém, no silêncio branco que anunciou o início do ciclo final, ele aprendeu a ler o sempre outro plano de construção da máquina que ele parou de ser novamente era outro com cada olhar garra passo e que ele o pensou mudou escrito com o manuscrito de seus trabalhos e mortes.


Tradução: Milton Camargo Mota

Presente em Medeamaterial e outros textos – Editora Paz e Terra (1993)

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