Espetáculos Espectrais - Romance, de Sérgio Bianchi

"O trabalhador culpa ao chefe. O chefe culpa ao gerente geral. O gerente geral culpa ao trabalhador, ao chefe e ao dono da empresa. O dono da empresa culpa a todos, não é? Mas principalmente ao fornecedor da matéria-prima. O fornecedor da matéria-prima culpa a falta de incentivos do governo, o governo atual culpa o governo passado e a oposição continua culpando o governo mas principalmente a falta de compreensão do povo. Enquanto isso, o verdadeiro culpado assiste a cena de longe às gargalhadas - geralmente com sotaque - porque ele sabe muito bem que todos têm razões de sobra pra se culparem mutuamente e assim deixá-lo em paz." - Antônio Cesar nos primeiros segundos do filme


Romance (1988), de Sérgio Bianchi, é um retrato áspero do Brasil em sua época de democratização. Enquanto o otimismo político de alguns pululava pelas ruas, Bianchi mostra o cenário que se perpetua mesmo com a abertura democrática: a permanência das elites, o moralismo pós-moderno, a AIDS, o neoliberalismo implacável, a força das indústrias que coordena os esforços como os do agronegócio, dos automóveis e das farmacêuticas num escrachado conluio com o poder público. Um Brasil que permaneceu e permanece.

Antônio César é um intelectual de esquerda que estava escrevendo um livro que iria revelar todo esse grande esquema de maneira explosiva. "Ele foi escritor, poeta, jornalista, cineasta, publicitário, e no entanto, toda essa obra riquíssima está meio espalhada por aí, meio perdida nesse nosso país desgaçadamente sem memória", diz em certa altura um deputado que teve um passado conflitivo com o autor. Ele morreu em circunstâncias duvidosas e os manuscritos de seu livro bombástico sumiram. Maria Regina, uma pesquisadora e admiradora do autor, começa uma investigação própria sobre o conteúdo do livro que ele escrevia e sobre as circunstâncias da sua morte. Ela se torna uma mulher que fica sabendo demais, e em certo ponto seu destino só pode ser o extermínio ou a cooptação, sua forma mais sutil.


O filme se desenrola em cenas fortes, típicas dos filmes de Bianchi, em que cada take contém uma fórmula inflamável do escancaramento. Provocação não, é a realidade. Mas a realidade social incomoda, ela é amarga, traz desgosto. O cinema de certo serve só pra divertir com um tom leve e dramático. Deve ser isso que pensam os que classificam Bianchi como um provocador. Assim como seu protagonista póstumo, Antônio César, que aparece em diversos vídeos em que aparece na mídia e que ele gravou de si mesmo, o diretor quer desvelar a ilusão de uma brasilidade festiva e mostrar o que há por baixo: a preservação das mesmas estruturas coloniais pintadas de democracia, a fábrica de doenças e decadência que envenena a cada um e ao meio ambiente, o moralismo hipócrita da classe média que acha que manda usado de escudo e de tapa para sua visão, excluindo a periferia de sua percepção e mostrando o caminho que deve seguir para não se amedrontar com o mundo à sua volta, sempre em frente, obediente, em ordem rumo ao progresso.


O diretor definitivamente tem uma assinatura própria, seu estilo não ortodoxo de condução das narrativas resulta numa metralhadora semiótica de agudas percepções do âmago da frágil humanidade de cada um. Lampejos esclarecedores de uma realidade que está tão na nossa cara que nos anestesiamos dela, ao contrário de um cinema onírico das fantasias, o cinema de Bianchi é um cinema do despertar. Ele mostra como todos nessa sociedade moderna estão enredados em contradições estruturais e culturais que não podem ser facilmente reduzidas ou resolvidas. A cinematografia do diretor sempre consegue fazer muito com pouco. Não são produções cheias de recursos e truques caríssimos para dar uma cara mais vibrante e sedutora, que geralmente dá o verniz superficial da comercialidade para um filme. A beleza da cidade crua, das pessoas nuas - psicológica e fisicamente, em suas interações absurdas consigo mesmas e com as outras, de um Brasil cronicamente inviável, das fugas que dão em becos sem saída. O filme foi filmado em São Paulo e em Curitiba, e tenho que ressaltar a memorável cena em que Antônio César destrói o gabinete do deputado já citado, atirando até sua mesa da janela do último andar do histórico e hoje restaurado Paço da Liberdade, no centro da capital paranaense. A vivacidade do vandalismo do personagem captada na destruição real de todos os objetos do escritório é uma representação literal da força discursiva de seus filmes. E claramente Bianchi tinha os contatos certos para conseguir vandalizar uma sala desse importante prédio histórico.


Chegando no fim do filme, há uma espécie de interrupção do gênero discursivo ficção para inserir uma montagem documental de caráter explicitamente didático que explica a urbanização do Brasil, o processo de proliferação de favelas desde a expulsão de camponeses pobres de terras de latifúndio, passando pela monocultura de cana e produção de álcool, envenenamento de rios e uma tragédia anunciada fruto das terríveis condições de vida às margens da civilização industrial. Onde está a barreira da ficção? Ela se diluiu. Se já não ficou claro, nesse momento o filme se revela como uma denúncia, um enfrentamento real - contra o real, contra a configuração absurda e cruel dessa sociedade plutocrática. Fico pensando o que ele quis com esse título: Romance. Atrair incautos para uma teia que os envolve num enredo fatal? Quem sabe a vida crua que o filme nos mostra seja o romance, o romance verdadeiro? Talvez uma reverberação do trágico romantismo clássico da literatura, em que pessoas angustiadas chegavam ao ponto do suicídio e do assassinato devido à intensidade de suas emoções exacerbadas? Um combustível para a revolta, para uma tomada de posição? Insurreição ou sujeição? Veja o filme.

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