Espetáculos Espectrais: O Bandido da Luz Vermelha

O Bandido da Luz Vermelha (1968), filme de Rogério Sganzerla

TRATA-SE DE UM FAROESTE SOBRE O TERCEIRO MUNDO

Sganzerla. Crítico do críptico, desvelando às ocultas, olhar perquiridor, cinemática extática, semiotransgressor, sensível e agressivo, irreverente e cínico. Seu olho clínico sobre a situação social revela nuances de um esquema maior, percebe com perspectiva rapineira os planos maiores da maquete urbana/humana - a grande figura, que não pode ser assim mostrada, não é assim que acontece. São códigos, situações, nomes e mistérios as peças desse jogo cujo manual de regras se perdeu e teve de ser improvisado. Arbitrariedades profundas sintomáticas de um mal maior, profundidades sintéticas de uma animalidade pior. A pompa dos safardanas à mostra como o que realmente é: pavoneamento estúpido para disfarçar a perversão. Arte como crime - crime como arte. Um tapa, um tiro. Um beijo com desdém na boca do além.

UM GÊNIO OU UMA BESTA




O espectador é conduzido pela ação por uma narração que imita a linguagem radiofônica dos anos 60, ridicularizando a narrativa policialesca com toda a pompa de seus bordões, invadidos pelos pulsos poéticos e exageros que expõe a natureza cômica dos códigos jornalísticos. A imagem intermitente de um letreiro de rua que passa mensagens noticiosas complementa a narração com fragmentos que podem ou não se relacionar com as cenas em que ela se insere. As frases em destaque, gritadas através desse texto, são retiradas de falas dos narradores, personagens ou dos letreiros. São chaves para a narrativa aforismática desse filme. Aforismos, passagens, reflexões e pensamentos que nos assaltam assim como as imagens, roubam nossa atenção e atiram ideias. Alvejados por fragmentos de informação cuja própria construção segue uma agenda desconhecida, articulações difusas e estratégias escusas - não é assim que vivemos?

QUEM TIVER DE SAPATO NÃO SOBRA!



Esse não é um filme moralista ou moralizante. Lançado pouco tempo antes do AI-5, foi uma cartada rápida num jogo marcado. Sganzerla nos mostrou a natureza dessas instituições mecânicas e relações hipócritas em que vivemos, onde a narrativa do crime é construída para nos desviar a atenção das atividades criminosas legalmente amparadas e socialmente legitimadas pela maleável opinião pública.

OS GÂNGSTERS ESTÃO EM TODAS: NA POLÍTICA, NA ADMINISTRAÇÃO, NAS FAMÍLIAS, NO FUTEBOL, NA IMPRENSA, NOS BILHARES E NAS ELEIÇÕES. NA VIDA NOTURNA, NOS ATENTADOS CONTRA O PRESIDENTE, NA PAZ, NA GUERRA, NOS MONASTÉRIOS E NOS PRESÍDIOS. NEM SEMPRE É UM INIMIGO PÚBLICO NÚMERO UM!

O bandido de Sganzerla é o marginal sintomático. O subproduto indesejado do desenvolvimento humano. Pouco importa o bandido real, em que este foi inspirado. Ele é o canalizador de uma narrativa que nos aponta o âmago criminoso de nossa civilização. Seus crimes não tem um viés ideológico, nessa época em que o banditismo por questão de classe tem implicações políticas, seu ódio é existencial. A ousadia temerária de seus crimes seduzia algumas patroas, que eram tratadas pelos maridos magnatas como a casa, o dinheiro, as joias - propriedade privada. Mas não é um bandido romântico, idealista. Essa é mais uma trágica e banal história de nossa era industrial, onde cadáveres frescos na calçada são cobertos com jornais. Ele está sempre caçando, a procura de algo que não encontra. Chame do que quiser: identidade, propósito. Luz tem uma maleta cheia de bugigangas em que escreveu bem grande no forro: "EU".



UM BRASILEIRO À TOA NA MARÉ DA ÚLTIMA ETAPA DO CAPITALISMO


"Arte moderna... é o que sempre digo: coisa de depravado", essa frase é do investigador/delegado Cabeção (para os íntimos) em uma cena do crime do temível bandido. Parece algo que já vimos em algum lugar, não? Os nazistas promoviam exposições dos grandes artistas da arte moderna, para denunciá-los como pervertidos e agentes da decadência e depois queimar suas obras em público. Essa não é a única referência aos criminosos do Terceiro Reich no filme, a certa altura o letreiro impassível diz:

MARTIN BORMAN, O HERDEIRO DE HITLER, NÃO ESTARIA REFUGIADO NO PARAGUAI - MAS DISTRIBUINDO DÓLARES FALSOS NO GUARUJÁ


Mais tarde veremos uma suposta ligação entre o infame criminoso de guerra que escapou no fim do conflito com o proeminente político brasileiro J.B. da Silva, intimamente relacionado com a gangue Mão Negra, contraventores de diversos truques que agem em São Paulo. J.B. diz ter jurado, em sua primeira comunhão, se tornar presidente para tirar o povo da miséria. É inquirido por um repórter: "E a miséria?", com elegância responde:  "Que miséria meu filho? Um país sem miséria é um país sem folclore, e um país sem folclore o que que nós podemos mostrar pro turista?"

Luz é um bandido sim, mas não se mistura com esses gângsters organizados. Luz é solitário, suicida. Já tentou se matar bebendo tinta a óleo, mas não deu pé. Uma cena mostra um programa de TV onde cidadãos de bem apoiavam a pena de morte num discurso inflamado, enquanto isso ele tomava banho de bidê.




E o jornalista grita impaciente na redação: "Pelo amor de Deus, um homicídio pra primeira página!"

TUDO ESTÁ ILUMINADO POR UMA TERRÍVEL LUZ AVERMELHADA!

Assista o filme e veja o desfecho, mas principalmente o desenrolar, dessa trama abjeta que nos traz o Século XX embaralhado num disco prateado. Que fim levará o temido marginal?  "Precisava sair de toda aquela confusão, de toda aquela balbúrdia, de toda aquela palhaçada que não vai mudar nem a cor da sua gravata!" E todas essas tramóias político-econômicas que o império precisa empreender para sobreviver, chegarão aos ouvidos do grande público? Discos voadores foram avistados em vários lugares do país, e invadiam também as notícias do rádio. Que relação teriam esses objetos não identificados com nazistas refugiados na América Latina, gângsters-ministros em sua escalada de poder e a instabilidade na bolsa de valores gerada pela morte de um magnata dos cosméticos?

O CONSPIRADOR É UM SONHADOR DO ABSOLUTO!


E sobem os créditos com a trilha do rock n' roll psicoativo de Jimi Hendrix, característico dos filmes de Mr. Sganzerla, mixado com cantos africanos do candomblé.

CONCLUSÃO: SOZINHO A GENTE NÃO VALE NADA! E DAÍ?

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