eu já tenho as minhas
próprias contradições. não conseguiria entrar pra algum partido ou movimento e
ainda abraçar as suas. ter de defendê-las ou criticá-las uma a uma para tentar
atingir um nível aceitável de coerência interna vestindo uma camiseta com uma
sigla. não dá. não me dê bandeira com símbolo algum. eu não vou segurá-la. não
tente me convencer a participar de militância publicitária que só realiza
propaganda e agitação superficial. entendo o poder da dimensão simbólica e
grande parte dele consiste em enganar. em mostrar, em discursar, em aparentar.
é o que aparece que importa. o ângulo certo e os retoques necessários. conhecer
as inseguranças e desejos mais secretos e mais universais e dedilhar seus
acordes com carinho. pouco importa o que não aparece. fora de quadro a cena
inspiradora com uma música emocionante não é nada. puro truque de palco. a
prisão da atenção. entretenimento - já viu a etimologia dessa palavra? pois é,
prender nossa atenção é o único recurso de sobrevivência pra todos os negócios
e instituições estruturais desse sistema. por isso seus artifícios e
sortilégios tem orçamentos estratosféricos e recursos fantásticos. produzem
fantasmas. reflexos superficiais de uma realidade refletida. mas refletida de
onde? refletida do que? onde está a fonte de luz? onde está o referencial? quem
encara o espelho? como na história do vampiro, só que às avessas. olho o
espelho e vejo o reflexo. mas eu não estou lá. lá? aqui. meu reflexo está ali,
minha imagem - minha linguagem inata, meu layout interativo intuitivo, minhas
configurações de autoimagem, meu reflexo refletido no espelho do outro. como eu
vejo o reflexo dos outros no meu espelho? será que essas imagens existem? só eu
que sou virtual? vampiro-às-avessas virtual? quais são as virtudes da
virtualidade? a mais óbvia é que você não existe. não de verdade. num mundo
justo todos serão considerados inexistentes até que se prove o contrário. se o
paradoxo não puder ser assimilado e instalado no sistema operacional, este não
será compatível com o ambiente da rede realidade. se a verificação do córtex
frontal resultar num erro de processador aborte a operação e tente fazer o
backup dos arquivos para outro dispositivo. o manifesto surrealista nunca
poderia ter conjecturado a natureza onírica destes tempos fluídos, quase um
século relâmpago depois. reflexos refratários em superfícies polidas ou
rachadas, sujas ou imaculadas, o reflexo que procura não é esse produzido pelas
leis da ótica - é um reflexo que te cobra banda larga. pacote de dados. qual a senha
do wi-fi? existe mais publicidade no mundo do que um ser humano de 128 anos
poderia absorver se ficasse grudado numa tela do parto ao caixão. some a isso o
entretenimento e as notícias. qual a diferença entre esses três mesmo? cada vez
mais parecidos, enredados, filhos da mesma indústria fértil e farta, filhos
pródigos da mesma ninhada bestial, eternos magotes famintos projetando suas
mandíbulas de hipopótamo para abocanhar um punhado da nossa atenção, uma ampola
do nosso espírito, para inocular seu feitiço narcótico, um sonho manufaturado
engenhado especialmente para sua satisfação, camadas de tratamentos de cores
para criar um mundo mais vívido que o seu, a magia da ilusão e da edição se
fundem com ternura em seu coração, quem é o novo ícone da revolução? a nova
popstar teen do clube do Mickey fez um vídeo de si ostentando um prolapso retal
e o novo passinho do Esquenta virou viral. abuso. alienação da mercadoria.
mercadoria que é o corpo. objeto e identificação. objetivo e indexação. é a
alma. uma nova promoção. promoção e pra mocinha. sonhos de transformação
transformados em merchandising. os meios de profusão transmitindo a
programação. transmentido pra população. informação, entretenimento, notícia,
propaganda, pronunciamento, publicidade o que discernir de toda essa lavagem?
miúdos. miúdos mergulhados na estática. doce ruído branco analógico, seus
fantasmas costumavam assombrar mansamente os lares das famílias que botou pra
dormir, como babá diligente ou janela do desespero, agora já não estão mais lá.
substituídos pelos erros digitais, glitches nos megapixels da sua tela, uma conexão que se encerra, qualquer melodia
reduzida à perpétua repetição de um décimo de segundo travado caído no gráfico
frustrado desconectado cordão umbilical que vinha arrastando a décadas
subitamente arrancado, conector usb não identificado. entorpecimento eletrônico
interrompido. narco narciso torceu as narinas pra substâncias físicas. o que
importa são as qualidades espirituais do ego - atenção. todos querem entreter.
com sua dor, com sua raiva, com a sua confusão, com a sua alegria. um riso ou
uma lágrima é o pagamento - devidamente contabilizado pelo google adsense. não
há nada pra revelar pois é tudo verdade. é tudo real. documental. suco
mental. extraindo leite de caixinha. longavida bandalarga e cocaboa – the millenial
dream
(foto: urubu-máquina)
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