Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos
sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me
fariam perguntas por que navio bóia? Por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de
fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça decompõe nos pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos
Estes poemas foram publicados no livro Paranóia em 1963, o primeiro que o poeta paulistano publicou. Piva é considerado um expoente da poesia surrealista brasileira, inspirada pelos surrealistas franceses e pelos beatniks. Paranóia é uma perseguição desvairada por visões em São Paulo, palco de encontros oníricos com Garcia Lorca, Mário de Andrade, Lautréamont e outros fantasmas que povoavam a mente de Piva. É um manifesto contra a frieza do concreto, contra a estética urbana da passividade, contra os estandartes hipócritas das vazias vidas metropolitanas.
Poema Porrada
Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
cristãos fábricas palácios
juízes patrões operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que existo
"Paranóia foi a forma que encontrei para exorcizar a cidade e o câncer urbano das pessoas."
Poema da Eternidade sem Vísceras
Na última lua eu odiava as montanhas
minha memória quebrada não pode receber
o amor
eu tomava sopa aguardando meus amigos desordeiros
no outro lado da noite
este é o meu estranho emprego este mês
outro tempo quando o velho Gide se despachava para a África
meu coração era sólido eu dançava
eu assistia uma guerra de chapéus e as brancas
lacerações dos garotos no Ibirapuera angélico
terreno vazio onde eu mastigava tabletes de
chocolate branco
no próximo instante eu vi árvores e aeroplanos com bigodes
e lágrimas de Ouro
no Ibirapuera esta noite eu perdi minha solidão
ROBERTO PIVA TRANSFERIDO PARA REPARO DE VÍSCERAS
todos meus sonhos são reais oh milagres epifanias
do crânio e do amor sem salvação que eu sabia presos
no topo da minha alma
meu esqueleto brilhava na escuridão
repleto de drogas
eu nunca estou satisfeito e ando um incorrigível demônio
lunático com os dez dedos roídos tamborilando num campo
magnético
memória de arsênico que eu dei a uma pomba
os olhos cinzentos do céu meu oculto Totem espiritual
Eu direi as palavras mais terríveis esta noite
enquanto os ponteiros se dissolvem
contra o meu poder
contra o meu amor
no sobressalto da minha mente
meus olhos dançam
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber se as mulheres são
férteis e Deus caiu no mar se
Kierkegaard pede socorro numa montanha
da Dinamarca?
eu urrava meio louco meio estarrado meio fendido
narcóticos santos ó gato azul da minha mente!
eu não posso deter nunca mais meus Delírios
Oh Antonin Artaud
Oh Garcia Lorca
com seus olhos de aborto reduzidos
a retratos
almas
almas
como icebergs
como velas
como manequins mecânicos
e o clímax fraudulento dos sanduíches almoços
sorvetes controles ansiedades
eu preciso cortar os cabelos da minha alma
eu preciso tomar colheradas de
Morte Absoluta
eu não enxergo mais nada
meu crânio diz que estou embriagado
suplícios genuflexões neuroses
psicanalistas espetando meu pobre
esqueleto em férias
A máxima rimbaudiana do desregramento dos sentidos era levada a sério pelo poeta. Radicalmente antropófago, desbravava os limites, rompendo as barreiras da língua, da moral, das certezas e das próprias convicções, Roberto Piva é um autor mutante. Durante sua vida seguiu escrevendo e lançando vários livros, cada um marcadamente distinto do anterior mas com a verve característica do poeta. A busca por forças ancestrais o levou ao contato e imersão no candomblé e no xamanismo, elementos muito presentes na última fase de sua produção.
O vídeo acima é um dos últimos registros de Roberto Piva recitando uma de suas poesias, durante a gravação do documentário Assombração Urbana, sobre sua vida e obra. Você pode vê-lo no Youtube clicando aqui. O livro Paranóia pode ser encontrado na íntegra aqui.
Jurema Preta
Sou aluno
das árvores
alma elétrica
nas veredas mais secretas
Catimbó sonâmbulo
& seus palácios
meu crânio virando brasas
desfolhando meu coração
mananciais transfigurados
na
memória
(Em Estranhos sinais de Saturno - 2008)
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